Reeleição de corruptos e o “paradoxo do brasileiro”

0
589

pauloPor que os brasileiros abominam os políticos corruptos e frequentemente os reelegem? Por que 250 mil paulistas reelegeram Paulo Maluf, mesmo depois de ele ter sido, na Suíça, o protagonista involuntário (“Sr. Propina”) de uma propaganda contra a corrupção mundial? Suely Campos (PP) se tornou governadora de Roraima porque seu marido (ex-governador Neudo Campos) foi barrado pela Lei da Ficha Limpa(foi preso e declarado improbo judicialmente). Assumiu o cargo e nomeou 19 parentes para vários cargos públicos. Juntos receberão R$ 398 mil por mês. Nepotismo deslavado. Justificou-se dizendo “ser prática comum na história de Roraima [na verdade, faz parte da história do Brasil]”. Nota-se que ela está cumprindo o que prometeu na campanha: “Implementarei políticas para mulheres, para jovens, crianças e também para a família”. Mais uma expressão do sistema hiperviciado brasileiro (veja Oliveiros S. Ferreira, Teoria da Coisa Nossa), que criou um Estado com um lado monstruoso caracterizado pela plutocracia (Estado governado ou influenciado por grandes riquezas), cleptocracia  (Estado cogovernado por ladrões) e genocidiocracia(Estado que pratica ou tolera a violação massiva – e normalmente impune – dos direitos fundamentais, direta ou indiretamente voltada para o extermínio de pessoas predominantemente pertencentes a etnias ou classes sociais desfavorecidas).

O “paradoxo do brasileiro” é uma provocação à lógica. Não há brasileiro que não esteja indignado com “tudo isso que está aí” (corrupção, roubalheira nos órgãos públicos, financiamentos eleitorais indecentes, morosidade da Justiça etc.). Os padrões de convivência civilizada sempre estão deteriorados. O moderno convive com o arcaico. Fabricamos aviões e ainda contamos com 13 milhões de analfabetos (e 3/4 da população são analfabetos funcionais). Os serviços públicos são indecentes. As humilhações, consequentemente, são constantes. O brasileiro anda descontente, angustiado, indignado e revoltado com a situação do país, com a corrupção, com os políticos desonestos, com as falsas promessas, com o nepotismo, fisiologismo (troca de favores e benefícios) e tantas outras coisas. Todos com quem conversamos querem mais ética e mais justiça, menos inflação, mais igualdade, mais eficiência no serviço público; mais ordem, mais segurança, mais hospitais, mais médicos. Cada um de nós protesta, reclama, amaldiçoa, abomina, critica.

Individualmente não concordamos com “nada do que está aí”. Temos a crença e o sentimento de que somos pessoalmente muito melhor do que essa bandalheira que grassa pelo país afora. Ninguém aceita, ninguém está de acordo com o mar de lama, o deboche e a vergonha da vida pública e comunitária que nos aflige. Coletivamente, no entanto, o resultado final de todos nós juntos é tudo isso que está aí (esse é o “paradoxo do brasileiro”, desenvolvido por Eduardo Giannetti, Vícios privados, benefícios públicos?: 12 e ss.). Pessoalmente (e no plano dos discursos: orais ou nas redes sociais) somos (e vendemos) a imagem do que gostaríamos de ser (honestos, probos, íntegros, avançados, progressistas, amistosos, cordiais etc.). Discursamos sempre de acordo com essa imagem. Coletivamente não somos nada (ou somos muito pouco) dessa imagem que gostaríamos de ser. É por isso que o todo é muito menos que a soma das partes. Se o produto final (nós como um todo) é horroroso, indecente, indolente, mal-afamado (a classe política nada mais é que uma síntese ou espelho da sociedade que temos), como isso pode acontecer, se nos nossos discursos somos éticos, exemplares, leais, cordiais e probos? Por que discursamos como suecos civilizados e nossa sociedade como um todo é, em termos civilizatórios, tão indecente, tão aberrante, tão brasileira? Por que discursamos como os melhores motoristas do mundo e o resultado final são 45 mil mortos por ano no trânsito, milhares de aleijados, mais de meio de milhão de feridos? Por que bradamos por honestidade e reelegemos Maluf, Renan, Sarney e tantos outros políticos declaradamente desonestos?

Eduardo Giannetti (citado) explica: “A auto-imagem de cada uma das partes – a ideia que cada brasileiro gosta de nutrir de si mesmo – não bate com a realidade do todo melancólico e exasperador chamado Brasil. Aos seus próprios olhos, cada indivíduo é bom, progressista, e até gostaria de poder ‘dar um jeito’ no país. Mas enquanto clamamos pela justiça e eficiências, enquanto sonhamos, cada um em sua ilha, com um lugar no Primeiro Mundo, vamos tropeçando coletivamente, como sonâmbulos embriagados, rumo ao Haiti. Do jeito que a coisa vai, em breve a sociedade brasileira estará reduzida a apenas duas classes fundamentais: a dos que não comem e a dos que não dormem. O todo é menor que a soma das partes. O brasileiro é sempre o outro, não eu”. Nisso reside uma amostra da psicologia moral brasileira. Que é volúvel. Há momentos de ufanismo com o país (“abençoado por Deus e bonito por natureza”). Narcisismo inveterado. Fora dele, quanto mais a situação do país piora, mais cultivamos nossa auto-imagem (de impoluto, honesto a toda prova, probo, altaneiro). E quanto mais incrementamos nossa auto-imagem individual, mais o coletivo se afunda na bandalheira, na roubalheira. Mais reelegemos os políticos reconhecidamente corruptos. Esse é o “paradoxo do brasileiro”.

Saiba mais

Veja o exemplo da escravidão. Era deplorada por praticamente todos. Nos discursos todos diziam ser contra ela. Até uma lei fizemos (para o “inglês ver”). Mas todos (fazendeiros e classe média) tinham escravos. Por isso que só em 1888 a escravidão foi abolida. Nós discursamos como gostaríamos de ser (mas agimos de outra forma). Por isso de diz (Eduardo Giannetti) que a educação no século XXI é o equivalente moral da escravidão (todos discursamos em favor dela, mas nos comportamos para que ela continue indecente como está). Diga-se a mesma coisa em relação à má distribuição da renda, à desigualdade, à impunidade: todos discursamos contra, mas nos comportamos para que nada mude. Uma coisa é o discurso, outra é a realidade (que segue seu curso no contrafluxo de todos os nossos discursos). Os protestos passam, os padrões de conduta ficam.

De todas as nações do mundo, algumas são obtusas no discurso e sábias na ação (veja Carlyle, citado por E. Giannetti). Nós somos o contrário. Uma alquimia perversa, “transforma a fina porcelana dos nossos discursos, promessas e exortações no barro tosco das nossas ações desastradas e resultados medíocres” (Giannetti). Que seria isso? Hipocrisia? Nosso autor não concorda com essa tese. Afirma que “o desejo de pensar bem de si próprio – de se ter em boa conta – é uma das mais poderosas forças da psicologia humana. Ninguém suporta conviver com uma imagem muito negativa de si mesmo por muito tempo. ‘É doce manter nossos pensamentos longe daquilo que fere’, dizia Sófocles” (Giannetti). Nosso verdadeiro problema, concluir nosso autor, é o auto-engano. “A mentira mais frequente é aquela que contamos para nós mesmos – mentir para os outros é a exceção” (Nietzsche).

Quem critica os outros, quem censura, quem reprova, quem legisla e quem julga os outros vive um estranho autismo voltado aos seus valores e ao que acredita ser. Discursamos como fôssemos o que gostaríamos de ser. Esse auto-engano chega ao grau mais sofisticado de toda fantasia moral (e ética) quando acreditamos naquilo que achamos que somos (de tanto repetir regras, códigos, preconceitos, maledicências, repugnâncias, refutações, verberações, acabamos acreditando que somos o que enunciamos: honestos, impolutos, probos, irretocáveis etc.). É precisamente esse o fenômeno que se passa com os eleitores frente aos políticos: repetem tanto que eles são desonestos, corruptos, improbos, que acabam acreditando que são o oposto deles. Na hora do voto, no entanto, reelegem os mesmos corruptos de sempre. Falamos de alguém que desejamos ser (éticos, impolutos, honestos) como se fôssemos (Karnal).

Quando as pessoas acreditam em alguma coisa, dão vida para essa coisa, ainda que ela seja falsa e irracional. Nós todos (com pouquíssimas exceções) adoramos legislar, normar, julgar, classificar, criar regras, criticar, censurar, reprovar, para nos sentirmos no lado do bem, dos “certos”. Mas tudo isso está no plano dos discursos ou, no máximo, da criação de uma norma “para os outros”. Nossa ação, no entanto, nem sempre corresponde ao nosso discurso. A prova disso é o quanto o brasileiro pragueja os políticos corruptos e o quanto ele os reelege. Sabendo disso é que os políticos têm maior complacência com as críticas contra sua honorabilidade. Sabem da malícia. Sabem que o crítico que critica, em regra, é quem ele gostaria de ser, não o que ele é. Sabem que o inquisidor (e o moralista) vende uma auto-imagem que não corresponde à realidade. Quem discursa, muitas vezes, é a sombra (não a pessoa verdadeira). Tanto é verdade que quando esse crítico vai votar acaba reelegendo precisamente os políticos que ele criticara. Quantos não criticaram Paulo Maluf e votaram nele? O político experiente sabe de tudo isso. Ele despreza a sombra que fala, para cultuar o verdadeiro humano que está por detrás de quem fala. Quem discursa é o lado falso. Quem vota é o lado verdadeiro. O falso é crítico, é censurador. O verdadeiro é o que reelege o corrupto. Basta entender que o humano é homo sapiens, faber, oeconomicus, ludens, demens e loquax.

P. S. Participe do nosso movimento fim da reeleição (veja fimdopoliticoprofissional. Com. Br). Baixe o formulário e colete assinaturas. Avante!

Luiz Flávio Gomes

Luiz Flávio Gomes

Professor

Jurista e professor. Fundador da Rede de Ensino LFG. Diretor-presidente do Instituto Avante Brasil. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), Juiz de Direito (1983 a 1998) e Advogado (1999 a 2001). [ assessoria de comunicação e imprensa +55 11 991697674 [agenda de palestras e entrevistas] ]