O reincidente pensamento escravista

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Por Vinício Carrilho Martinez (*)

A abordagem de dois policiais militares a um suspeito (já procurado, reincidente), que resultou nos dois policiais baleados com a arma da corporação, tem sido usada como alegação de uma “nova” abordagem. Só que não é nada nova, é a expressão do racismo institucionalizado na Polícia Militar do Estado de São Paulo. O erro primário, a falta de treinamento adequado, que só poupam os oficiais, não podem ser tidos como “desculpa válida” para o pensamento escravista: amarrar um negro pelos pés e pelas mãos, em 2023, é a réplica do capitão do mato que acorrentava os escravos fugidos.

A Constituição Federal de 1988 (CF88) é uma Carta Política, mas com defeitos de origem não solucionados até hoje.

A “linguagem apropriada” acabou por esconder a realidade social aflorada pelo pensamento escravista (tornou sua essência relativa).
Na CF88 lê-se a proibição de haver discriminação por “raça”, como fundamento do Estado Democrático de Direito. Quanto ao fundamento da forma-Estado adotada não há o que se discutir: nenhuma forma de discriminação pode ser tolerada.
Porém, ocorre que não há “raças humanas” desde que o Neandertal foi subsumido (geneticamente) ou aniquilado pelo Homo sapiens. Só há uma espécie, desde então. E mais, esse conhecimento já estava disponível em 1988.
Depois, a CF88 trata como crime hediondo a exploração do “trabalho análogo à escravidão”. Quanto a criminalizar na forma hedionda da pena, tal “fato social”, também não comporta discussão. Toda barbárie deve ser servida pelo máximo rigor da Lei Constitucional.
Todavia, ao minimizar como “trabalho análogo à escravidão”, acabou por mitigar o crime maior: o pensamento escravista dominante como referência classista de exploração social.
Isto quer dizer que a extrema precarização do trabalho não é escravista, análoga à escravidão, afinal, passou por reforma trabalhista, revogatória, na prática social hegemônica, do artigo 7° da CF88. Se não há direitos trabalhistas, não há que se falar em garantias constitucionais trabalhistas.

A descrição do “trabalho análogo à escravidão” – agora até na forma remota, digitalizado no home office – é um exemplo do excesso linguístico (politicamente correto) que tornou incorreta a avaliação social. Por isso, devemos entender que expressa uma disfunção constitucional muito mais grave do que a proibição da “discriminação por raça”.

É claro que os linguistas de 1988 se valiam da condenação da escravidão à ilegalidade. Desde 1888, legalmente/formalmente falando, a escravidão deixou de ser considerada como modo de produção aceitável.
O que os linguistas da época não sabiam (e talvez os atuais também não saibam) é que o Brasil é ímpar: sempre tivemos um modo de produção especial, congregando escravidão e capitalismo. Sempre fomos híbridos.
A pejotização, a uberização da classe trabalhadora (trabalho análogo à escravidão legalizado desde 2017) comprovam isso.

Como se vê, trata-se da prática social hegemônica da expropriação social. Bem como a escravização pós-moderna é “velada”, escorregadia, na essência do “trabalho análogo à escravidão” – e que tanto serve ao resiliente pensamento escravista.

Só mudar essas formas constitucionais não resolve o problema, mas nos colocaria num debate social sobre o “racismo lato senso”, nossa herança social, cultural, machista, misógina, classista, desumanizadora.
Comecemos por corrigir as falhas crassas de linguagem constitucional como exercício pedagógico, de reflexão social com vistas a um reflexo social significativo.

Portanto, fala-se sempre do racismo porque é a efervescência do pensamento escravista, que vigora e age em todos os setores sociais: da reforma trabalhista ao trabalho escravo, do negro amarrado ao feminicídio.

É o “nosso eterno retorno” ao racismo lato senso.

(*) Vinício Carrilho Martinez é professor Associado II (Dr.) do Departamento de Educação da Universidade Federal de São Carlos. Pós-Doutor em Ciência Política e em Educação – UNESP/Marília.

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