O dolo inelegível de Deltan Dallagnol e o acerto decisório do TSE

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O deputado federal Deltan Dallagnol, ex-procurador, teve mandato cassado pelo TSE. Crédito: Bruno Spada/Câmara dos Deputados

Por THIAGO AGUIAR DE PÁDUA (*)

Muitos têm comparado o caso do ex-procurador com a renúncia de Collor no impeachment do ex-presidente

Recentemente o professor Miguel Godoy escreveu neste JOTA texto em que chamou de “erro” a decisão do TSE, mas que poderia ser corrigido pelo STF, no caso da inelegibilidade de Deltan Dallagnol, sustentando ter havido violação indevida de direito fundamental, interpretação extensiva e afronta expressa à lei, por considerar procedimentos de natureza jurídica diversa de PAD como autorizadores da aplicação da inelegibilidade. Respeitosamente, divergimos.

Numa cena digna de cinema, o ex-procurador da República Deltan Dallagnol concedeu entrevista coletiva na Câmara dos Deputados, exaltando seus apoiadores a se levantarem contra o Tribunal Superior Eleitoral depois da decisão que reconheceu sua inelegibilidade, ocasionando a perda de seu mandato de deputado.

Alegou que o TSE “inventou” uma inelegibilidade para retirar seu mandato por uma suposta questão não prevista na Lei da Ficha Limpa. Bravateou, ainda, que respondia a 15 procedimentos disciplinares, para sutilmente arguir que não respondia a nenhum “PAD”, como determinaria a lei. Se disse perseguido, vítima de suposta vingança por ter sido uma espécie de herói que combateu os poderosos, afirmando que sua saída do Ministério Público Federal não teria gerado a inelegibilidade apontada.

Curioso é o fato de que a saída de Deltan do MPF é menos conturbada do que seu ingresso, que ocorreu ao arrepio da Lei Orgânica do MP, ensejando a impetração de mandado de segurança, pois não preenchia os requisitos da legislação. É que a norma exigia ao menos dois anos de bacharel em direito (art. 187, Lei Complementar 75/93), antes da EC 45, que aumentou o prazo, mas Deltan conseguiu uma liminar que lhe deu tratamento especial, permitindo o ingresso de forma ilegal no 18º Concurso Público[1].

Assim como seu ingresso, sua saída do MPF também registou grave violação legal, reconhecida por meio do acórdão unânime do TSE, no Recurso Ordinário Eleitoral 0601407-70.2022.6.16.0000, em decisão densamente fundamentada (37 páginas) que identificou fraude à lei (fraus legis), “pela prática de conduta que, à primeira vista, consiste em regular exercício de direito amparado pelo ordenamento jurídico, mas que, na verdade, configura burla com o objetivo de atingir finalidade proibida pela norma jurídica”, ou seja, pediu exoneração do cargo para evitar a incidência da Lei da Ficha Limpa.

É exatamente neste ponto que sua cinematográfica entrevista coletiva se deteve, alegando que foi o TSE, e não ele, que fraudou a Lei da Ficha Limpa, encetando vingança, numa atitude reprovável que constitui, infelizmente, mais um ataque às instituições, mesmo após os gravíssimos episódios do dia 8 de janeiro, e mesmo tendo o sistema recursal à sua disposição, preferiu incentivar uma espécie de desobediência civil contra um tribunal, agregando a isso a promoção de desinformação.

O TSE não acolheu pedido de inelegibilidade por causa da rejeição das contas de Deltan Dallagnol, realizada pelo Tribunal de Contas da União, por graves episódios financeiros da Lava Jato. Referida decisão foi suspensa por liminar da Justiça Federal, com argumentos jurídicos muito ruins, leia-se: estarrecedores.

Na verdade, a verdadeira polêmica reside no caso da não inelegibilidade por causa da rejeição das contas de Deltan pelo TCU, em tomada de contas especial, suspensa por decisão que pouquíssimas pessoas questionaram. Cuida-se de decisão da 6ª Vara Federal de Curitiba, auto 5033048-90.2022.4.04.7000, que “salvou” Deltan com dois fundamentos curiosos, conforme consta da liminar, e não mencionados na entrevista:

“O periculum in mora reside nas seguintes constatações:

  1. a urgência em julgar a TCE (uma urgência, aliás, mal justificada pelo relator), “irá inviabilizar o reconhecimento em tempo hábil, neste processo, dos vícios e impropriedades na citação, bem como obrigará o Autor a apresentar defesa sem elementos técnicos aptos a afastar o prejuízo imputado”;
  2. “a ostensiva divulgação deste caso, com a indicação de que os Procuradores envolvidos teriam supostamente causado prejuízo ao erário, implica em grave e indevido desgaste à reputação profissional do Autor”.

Sobre o argumento da urgência, o próprio Deltan menciona que a tomada de contas especial foi autuada dois anos antes da liminar, em 31/7/2020, e com isso fica claro que o judiciário inaugura um curioso caso de liminar da ficha limpa com urgência aparente de posse velha da usucapião (mais de ano e dia)!

Pelo outro fundamento da liminar salvadora de Deltan, confesso desconhecer que o judiciário já estava calibrando suas balanças tendo por critério a reputação de amigos em detrimento da Lei da Ficha Limpa (público x privado), mas nem sempre! Alguns aceitam que se prenda, ao menos por 581 dias, exatamente para manchar a imagem e a reputação! São imagens desconexas, parecidas com o “espelho da rainha má”, de que faz uso argumentativo a antropóloga Rita Segato, dialogando com Franz Fanon[2].

Não vimos ninguém afirmar que a Justiça Federal do Paraná “inventou” um fundamento de tutela de urgência para “salvar” Deltan Dallagnol da rejeição das contas e, por conseguinte, da inelegibilidade por ela causada. O respeito institucional se impõe!

A própria decisão do TSE especifica do que se trata: “ao tempo do pedido de exoneração do cargo de procurador da República, em novembro de 2021, tramitavam contra o recorrido 15 procedimentos administrativos de natureza diversa no CNMP, sendo nove Reclamações Disciplinares, uma Sindicância, um Pedido de Providências, três Recursos Internos em Reclamações Disciplinares e, ainda, uma Revisão de Decisão Monocrática de Arquivamento em Reclamação Disciplinar”.

Estamos falando de um procurador da República que possuía expressamente maus antecedentes, com duas condenações anteriores em processos administrativos julgados, “nos quais o CNMP aplicou ao recorrido advertência e censura, por sua vez aptas a caracterizar maus antecedentes para fim de imposição de sanções mais gravosas em procedimentos posteriores (arts. 239 e 241 da LC 75/93)”, como dito pelo TSE.

Observamos que se trata de um então procurador da República que pediu exoneração porque existiam elementos concretos de que não apenas vários processos administrativos seriam instaurados, que muito prevalente resultariam em sanções mais graves pelo conjunto de 15 apurações, somadas aos dois anteriores atos sancionadores disciplinares transitados em julgado (arts. 239 e 241 da LC 75/93).

Convém recordar o “paraíso dos conceitos jurídicos” de Jhering, quando ele descreve a cena em que os conceitos são vistos em sua forma “humana”, quando ele descreve o dolo, perguntando ao interlocutor se ele conseguiria identificar o conceito diante de si, obtendo a resposta: “— O rosto descarado de um deles o denuncia imediatamente: é o dolus. Pode-se ver a malícia que ele esconde em seu coração.” (Tradução livre)[3].

Fora a espirituosa brincadeira de Jhering, também é importante observar sua crítica ao fetiche dos conceitos, pois deveria ser abandonada a pretensão de que os conceitos fossem a matemática do direito, mesmo que aplicados de maneira absurda!

A este propósito, a interpretação de Deltan (e de seus apoiadores) defende que a inelegibilidade só ocorre, in casu, se houver pedido de exoneração na pendência de processo administrativo disciplinar, conforme art. 1º, I, “q”, da Lei da Ficha Limpa, que menciona a inelegibilidade daqueles membros do MP: “que tenham pedido exoneração ou aposentadoria voluntária na pendência de processo administrativo disciplinar”, o que gera uma série de reflexões.

É de se refletir, de acordo com a LC 75/93, que a referida norma possui as figuras da sindicância (art. 246), do inquérito administrativo (art. 247) e do processo administrativo (art. 252); a primeira figura pode gerar, se necessário, um inquérito, e este poderá gerar, se necessário, um parecer conclusivo pela instauração de processo administrativo.

As penalidades previstas são de advertência, censura, suspensão, demissão e cassação de aposentadoria ou de disponibilidade, (art. 239), e as “infrações disciplinares serão apuradas em processo administrativo; quando lhes forem cominadas penas de demissão, de cassação de aposentadoria ou de disponibilidade, a imposição destas dependerá, também, de decisão judicial com trânsito em julgado” (art. 242).

Ou seja, sem menção expressa às figuras da sindicância e do inquérito no momento em que a lei menciona possíveis sanções, presume-se que estas estão inseridas pelo legislador no próprio processo administrativo, lato sensu, pois não é possível extrair a conclusão de que as infrações serão apuradas em processo administrativo eliminando-se a anterior sindicância ou o inquérito do conceito, vale dizer, a lei se refere a processo administrativo para também abranger sindicância e inquérito.

Não fosse assim, indagaríamos: qual é o exato momento em que será gerada a inelegibilidade? A sindicância pode recomendar diretamente a instauração do processo administrativo, sem passar pelo inquérito? Caso ocorra, no âmbito do inquérito administrativo, proposição de instauração de um processo administrativo, mas ainda não instaurado, poderá ocorrer a exoneração sem que ocorra a inelegibilidade?

Com efeito, já que a própria LC 75/93 abrange três figuras (sindicância, inquérito e processo administrativo stricto sensu) dentro de uma (processo administrativo lato sensu), e se o pedido de exoneração ocorrer neste contexto, é evidente também que a expressão “processo administrativo disciplinar”, prevista no art. 1º, I, “q”, da Lei da Ficha Limpa também se refere a processo administrativo lato sensu.

Vale dizer, no caso concreto, que um procurador da República que almeje se candidatar a cargo eletivo não poderá, de fato, pedir exoneração na pendência de “15 procedimentos administrativos de natureza diversa no CNMP, sendo nove Reclamações Disciplinares, uma Sindicância, um Pedido de Providências, três Recursos Internos em Reclamações Disciplinares e, ainda, uma Revisão de Decisão Monocrática de Arquivamento em Reclamação Disciplinar”.

É assim não apenas porque há presença de dolosa fuga da sanção disciplinar, mas principalmente porque quando o art. 1º, I, “q”, da Lei da Ficha Limpa menciona processo administrativo, o faz de maneira ampla, lato sensu.

Aliás, muitas pessoas têm feito uma comparação com o episódio da renúncia no caso Collor, durante o impeachment do ex-presidente, alegando que se a renúncia houvesse precedido o início da abertura de procedimento pela prática de crime de responsabilidade, não haveria lugar para a perda dos direitos políticos, mas inclusive isso mudou com a inclusão da alínea “k” através da LC 135/2010, que determinou a inelegibilidade daqueles que “renunciarem a seus mandatos desde o oferecimento de representação ou petição capaz de autorizar a abertura de processo”, ou seja, pela simples petição e pela mera hipótese de futuramente possibilitar uma condenação, que pode nem ocorrer, desvinculando a inelegibilidade da instauração do próprio procedimento.

Por este ângulo, e por muitos outros, o dolo inelegível de Dallagnol foi reconhecido corretamente pelo TSE, lembrando a figura de Jhering sobre o “rosto descarado” e a “malícia” de quem ingressou no MPF ilegalmente e, como visto, dele também saiu ilegalmente.


[1] Defendido por seu genitor, um procurador de justiça aposentado, ajuizou o mandado de segurança 200270000103389, que inicialmente tramitou perante a 2ª Vara Federal de Curitiba, depois perante a 4ª Turma do TRF4, e, posteriormente, em grau de recurso, no STJ através do Ag 658591/PR, rel. min. Nilson Naves, na 6ª Turma, e também no STF, AI 607279, rel. min. Ricardo Lewandowski, em decisão monocrática.

[2] SEGATO, Rita; ÁLVAREZ, Paulina. Frente al espejo de la reina mala. Docencia, amistad y autorización como brechas de coloniales en la universidad. Versión. Estudios de Comunicación y Política, n. 37, 2016.

[3] JHERING, R. Von. Scherz Und Ernst In Der Jurisprudenz. Viena: Linde, 2009.

Fonte: JOTA