Irmão do Luciano Huck, cineasta diz que se sentiu doente e criminoso ao descobrir que é gay

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O cineasta Fernando Grostein Andrade e o namorado, o ator Fernando Siqueira

Há um ano, jornais e sites publicaram a notícia de que o cineasta Fernando Grostein Andrade, 36, é gay. Em três dias, sua conta no Instagram saltou de 8.000 para 35 mil seguidores. Explorados pelo enfoque de ele ser irmão do apresentador Luciano Huck, os textos ficaram entre os mais lidos nos principais sites noticiosos do país. Mesmo para um campeão de audiência como Fernando, que comanda a página Quebrando o Tabu, com 6,8 milhões de seguidores, a repercussão foi uma surpresa. “Eu não sabia que em 2016 é notícia um cineasta ser gay”, diz, ironizando a forma como a informação foi publicada.

“Por outro lado, recebi milhares de mensagens de apoio, de jovens, de mães. E até de pessoas religiosas dizendo ‘não concordo, mas tudo bem, continuarei gostando de você e de seus filmes'”.

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Ele já dirigiu documentários como “Coração Vagabundo”, em que viajou pelo mundo registrando a intimidade de Caetano Veloso, e “Quebrando o Tabu”, em que girou por vários países, com Fernando Henrique Cardoso, para um trabalho que defende a legalização das drogas. Com outros projetos na agulha, como uma comédia que será rodada nos EUA e uma série sobre agentes carcerários para a TV Globo, decidiu lançar um canal autoral na rede de sua produtora, a Spray Filmes, no YouTube.

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E resolveu falar, já no primeiro capítulo, sobre o fato de ser gay. “Achei melhor me apresentar logo de cara”, diz. Nos episódios seguintes, deixará de lado temas pessoais para entrevistar, por exemplo, um colaborador da CIA.

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No primeiro vídeo, que será postado neste domingo (12), o cineasta começa a contar a própria história desde os tempos em que seu pai, Mário de Andrade, publisher da “Playboy”, discutia as capas da revista com mulheres nuas à mesa de jantar. Fernando tinha 10 anos. A seguir, um resumo do depoimento, que ele abre com uma pergunta: “Você já se sentiu um ET?”.

O PAI

“O meu pai era ‘o’ cara da ‘Playboy’. E o que tinha de diferente na nossa casa é que no jantar, em vez de só discutir assuntos normais, a gente discutia a ‘Playboy’ da Maitê Proença, da Luma de Oliveira. Meus amigos vinham para a minha casa porque lá podia ter ‘Playboy’ à vontade.

Aí, conforme foi passando o tempo, eu comecei a me sentir um pouquinho às vezes estranho porque parecia que tinha alguma coisa diferente de mim com relação aos outros meninos.

Com 10 anos o meu pai faleceu [de um ataque cardíaco], eu fiquei completamente de luto.”

AS ORQUÍDEAS

“Me fechei no meu mundo. E, como toda criança normal de 11 anos [irônico], comecei a cultivar orquídeas. O jornal ‘SPTV’ fez uma matéria sobre mim, com o [repórter] César Tralli, na minha casa. E de repente todo mundo na escola sabia que eu cultivava orquídeas. Comecei a ser zoado. E comecei a ter vergonha. Eu fazia hipismo, usava aqueles culotes justinhos. Começaram a me zoar na hípica, me chamando de florzinha. Parei de cultivar as orquídeas.”

O cineasta Fernando Grostein Andrade e o namorado, o ator Fernando Siqueira

PRIMEIRA NAMORADA

“Com 16 anos comecei a ficar nervoso porque nunca tinha ficado com uma menina. Aí eu finalmente fiquei com uma menina [no dia seguinte, ela ficou com outro garoto, o que o deixou arrasado].

Começou a ficar muito difícil me relacionar com os meninos da minha idade porque vários deles ficavam falando de menina, menina, menina, futebol, futebol, futebol. Eu achava futebol um saco. Não era a minha praia. Nem futebol nem mulher pelada.

E eu me sentia cada vez mais um ET. Alguém que não pertencia a esse mundo.”

SONHO E PESADELO

“Com 14 anos eu tive um sonho com um amigo meu. E comecei a me sentir estranho.

Comecei a me sentir com vergonha da minha família, dos amigos, de tudo. Comecei a me fechar, me fechar, me fechar cada vez mais.

Comecei a me obrigar a ver a ‘Playboy’, para ver se a coisa ia, na força, no jeito.”

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Fernando detalhou à Folha os seus sentimentos. “Eu cresci achando que estava doente, que meu desejo era algo para se envergonhar, que aquilo era crime, até. Eu me lembro que, naquela época, era normal entre os meninos que eu conhecia, da minha idade, ir no Jockey jogar ovos nas travestis à noite. Nunca fiz isso, que fique claro. Mas só para você entender o ambiente em que eu cresci.”

Aos 17 anos, perdeu a virgindade com uma garota de programa. “Era uma obrigação”, disse à coluna, relatando pressões sociais incontornáveis. “Eu já fiquei nervoso porque não perdi aos 13 anos, num bar-mitzvá, como boa parte dos meus amigos —com garotas de programa.”

No depoimento no YouTube, ele diz como namorou um garoto pela primeira vez.

PRIMEIRO NAMORADO

Resultado de imagem para O cineasta Fernando Grostein Andrade e o namorado, o ator Fernando Siqueira“Foi aí que um belo dia aconteceu de eu estar bêbado, de um outro amigo meu estar bêbado, e a gente ficou.

No dia seguinte ele falou pra mim: ‘Olha, se você contar para alguém eu te mato’.

Aí ele jogou uma bomba na minha casa, um monte de bombinha de São João. O que foi bem assustador. E eu fui cada vez mais me colocando no armário, no armário. Até que a coisa foi ficando insustentável e tive coragem de ir contando para a minha família que eu era gay.”

O SUSTO

“A minha família no começo reagiu assustada, com medo do que a vida ia reservar para mim, dizendo que eu escolhi um caminho mais difícil. E aí eu expliquei para eles que eu não escolhi nada. Que a gente não escolhe isso, a gente simplesmente é.

Aos poucos eles foram entendendo, foram sendo cada vez mais parceiros e amorosos, principalmente depois que eu desenvolvi essa força dentro de mim, de dizer que tá tudo certo em ser gay.

E aos poucos eu fui ganhando força, confiança.

Até que eu senti um amor muito profundo na minha vida e esse amor me fez perceber que tava tudo realmente 100% Ok em ser gay.”

O SILÊNCIO

“Na minha época fez falta alguém dizer para mim assim ‘olha, tá tudo certo em ser gay, olha, não tem problema nenhum, olha, ser gay não é sinônimo de dar errado’. E eu de repente comecei a ver que é muito legal, entendeu, ser gay e falar disso numa boa.

Eu aprendi uma coisa me desentendendo com algumas pessoas queridas por conta desse assunto: que, às vezes, as pessoas que têm preconceito, elas apenas estão com medo, elas apenas estão com uma certa ignorância. E são pessoas queridas, que a gente gosta muito, e que às vezes a gente tem que ter paciência e tolerância para falar ‘olha, tá tudo bem em ser gay’.”

A TRAGÉDIA

O cineasta diz à Folha que, mesmo depois de assumir que é homossexual, também tinha seus próprios preconceitos. “Eu era homofóbico, eu tinha preconceito com gay afeminado. Demorou anos para eu perceber o quão escroto estava sendo.”

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Ele relata ainda a saudade que tem de um amigo que se suicidou. “Eu sabia que ele era gay”, diz. “A gente não falava [do assunto]. Ele não conseguia nem elaborar isso, e cresceu como uma pessoa absolutamente infeliz. Até que um dia se matou. E eu sei porque ele se matou. Ele ficou uma pessoa fora do lugar. E isso tira a sua paz. Você não consegue se desenvolver, trabalhar, estudar, você não consegue fazer nada porque tá sempre fugindo de algo que não tem como fugir, que é a sua sexualidade.”

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No fim de seu depoimento no YouTube, Fernando diz que, “olhando o mundo do jeito que tá hoje, com tanta gente equivocada tendo ascensão sobre posições que determinam o nosso futuro”, sentiu que era “quase uma obrigação” falar publicamente sobre o que ele passou desde que, aos 10 anos, começou a se sentir “um pouquinho às vezes estranho”.

A PAZ

“É muito bom você estar em paz. Vale a pena você assumir. E [saber] que pode acreditar e confiar. É difícil no começo, mas passa. E depois você se aproxima da sua família, dos seus amigos, a tua vida fica melhor. Você encontra a sua felicidade.”

Da Folha de São Paulo/ Mônica Bergamo

Karime Xavier/Folhapress