Vitor Guglinski: Shopping é de utilização pública e não pode barrar pessoas

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A Revolução Francesa deu uma lição ao mundo inteiro. Significou um março do liberalismo. A liberdade, após séculos de obscurantismo e submissão dos súditos ao absolutismo dos monarcas, era o valor, o bem maior perseguido pelo povo, dando origem ao Estado Liberal. Tal modelo resultou na intervenção mínima do Estado na vida privada, o que lhe rendeu a denominação de Estado Mínimo. Foi a expressão máxima da liberté, que encabeçou a tríade consagrada como “slogan” da revolução (liberté, égalité, fraternité).

Muitos países forjaram suas ordens jurídicas inspirados nos ideais revolucionários, inclusive o Brasil.

Se alguém me dissesse que, após 25 anos de vigência de uma Constituição timbrada como cidadã, pessoas estão sendo impedidas de adentrar os shopping centers do país, eu diria: só pode ser galhofa!

Contudo, é o que vem ocorrendo no atual momento social.

Nada obstante nossa Carta Fundamental ser inaugurada com a proclamação de que a República Federativa do Brasil se trata de um Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput); de dizer que o princípio da dignidade da pessoa humana é um de seus baluartes (art. 1º, II); de afirmar que dentre os objetivos fundamentais da República estão o de construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I) e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º, IV); de consagrar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput), não sendo ninguém obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II), sendo livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens (art. 5º, XV), há pessoas sendo impedidas de transitar livremente em espaços públicos, que são os shopping centers.

Ouço por aí absurdos do tipo: “Ah, mas tem que combater a marginalidade mesmo! São desordeiros perturbando a paz de gente de bem. Se reprimir, dá certo, tem que continuar”.

Argumentos como esse soam como aqueles casos em que alguns juízes chegam na comarca e baixam portarias visando impedir menores de circular livremente pelas ruas após determinado horário da noite. Não interessa o fim objetivado; é inconstitucional e ilegal! As pessoas precisam compreender isso!

Vivemos em um Estado Constitucional, cujo conteúdo da Carta Política é o resultado da superação de décadas de severa supressão de direitos fundamentais. Como num passe de mágica, os avós de hoje estão se esquecendo dos tempos que viveram na época da ditadura militar. Muitos lutaram e morreram para garantir que os filhos e netos de hoje não sucumbissem a arbitrariedades como as que ocorriam naquela época, sendo que hoje, exatos 50 anos depois, há até mesmo quem diga sentir saudades dos tempos da ditadura!

Nenhuma afronta ao texto constitucional é admissível, isto é certo. Contudo, o que vem ocorrendo hoje envolvendo a questão do “rolezinho” é inadmissível elevado ao quadrado, ao cubo, à centésima quinta potência… As normas definidoras de direitos fundamentais — e isso é lição elementar já no primeiro semestre do curso de Direito, até mesmo nos de quinta categoria — são de aplicação imediata (art. 5º, § 4º).

Tradicionalmente, os direitos fundamentais prestam-se a limitar o poder do Estado, evitando que os indivíduos sofram abusos por parte do Poder Público. No entanto, há situações em que os particulares também poderão violar direitos fundamentais, especialmente com fundamento no arcaico e leonino absolutismo da autonomia privada. É o que vem ocorrendo no caso do “rolezinho”.

Ocorre que os shopping centers, apesar de ostentarem a condição de propriedades privadas, são de utilização pública. Sendo assim, em consonância com as normas constitucionais definidoras de direitos fundamentais, é inadmissível o barramento de determinadas pessoas, pelo fato de terem origem humilde, pertencerem a algum grupo, ouvir determinado tipo de música etc. Deve o Estado intervir para garantir que esses abusos não ocorram (dirigismo estatal).

Henry Batiffol acentuava que:

“Se o direito é proposto em nome da sociedade e deve por isso de início, servir à vida social, para que a sociedade exista, não se pode negar, que, na concepção mais difundida, a vida social não constitui um fim em si, e que a pessoa é um valor mais elevado – qualquer que seja a explicação que se dê – deve encontrar o seu florescimento na vida em sociedade. O direito deve levar em conta essa finalidade da sociedade. Muito mais do que o bem próprio e intrínseco dessa última. Se a sociedade concede benefícios a um número mais ou menos significativo de cidadãos, mas ao preço da opressão de outros, já não se pode falar de um bem comum, pois a sociedade não é mais de todos” (A filosofia do Direito. São Paulo: Saber Atual, 1968).

Miguel Reale, por sua vez, afirmava que “o homem é o valor fonte de todos os valores”. Quase tudo que se tem produzido em termos jurídicos inspira-se nos diversos documentos definidores de direitos humanos produzidos desde o séc. XVIII.

O segregacionismo de classes foi derrubado pelos revolucionários na França. Luther King morreu combatendo o preconceito racial nos EUA, assim como Malcolm X. Mandela se foi deixando um legado à humanidade acerca do Apartheid. Isso somente pra citar alguns personagens mais célebres. Será que não aprendemos nada?!

Se os jovens que participam do “rolezinho” causam danos a pessoas e coisas, que sejam efetivamente punidos, na forma da lei. O que não se pode admitir são medidas profiláticas inconstitucionais, ilegais, abusivas e definidas por particulares, cujo objetivo é supostamente garantir a segurança, a paz e a tranquilidade de um grupo que se julga socialmente superior, sofisticado e incapaz de conviver com as diferenças.