STF em novo embate sobre demarcação de terras indígenas

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Foto: Nelson Jr./SCO/STF

Supremo Tribunal Federal deve julgar nesta quarta-feira (16/8) duas ações que envolvem a ocupação de áreas indígenas no Parque Nacional do Xingu e nas Reservas Nambikwára e Parecis, no Mato Grosso. Os casos, somados a outro processo em tramitação no STF, reavivam a discussão travada no tribunal em 2009 com o julgamento da terra indígena Raposa Serra do Sol.

Em 2009, o STF reconheceu a área em Roraima como reserva indígena, determinou a saída dos fazendeiros da região e estabeleceu uma série de condicionantes. O tribunal se divide sobre a aplicação automática dessas condições para todas as terras indígenas, o que poderá ser discutido no julgamento destes processos.

De acordo com entidades indígenas que acompanham os processos, o debate central no plenário do STF pode alcançar o chamado marco temporal. Essa tese fixa que apenas indígenas que estavam na terra ou a disputavam judicialmente em outubro de 1988, quando da promulgação da Constituição, poderiam ter direito a ela.

Os ruralistas defendem a adoção do marco temporal como critério para todos os processos envolvendo terras indígenas, o que dificultaria a demarcação de áreas que ainda não tiveram seus processos finalizados. Ao todo, são mais de 700 processos referentes a demarcações em tramitação no governo.

Na Ação Cível Originária 362, protocolada em 1986, o governo de Mato Grosso pede que a União e a Fundação Nacional do Índio paguem indenização pelas terras que, de acordo com o estado, foram ilicitamente incluídas dentro do perímetro do Parque Nacional do Xingu”, reserva com mais de 56 anos, com 27 000 quilômetros quadrados, que abriga mais de 5,5 mil índios de 16 etnias.

O estado argumenta que a ocupação da área por indígenas é irregular, uma vez que os índios não habitavam, e nem estavam permanentemente localizados na região do Parque, sendo transferidos pela União para ganhar proteção de doenças e agressões das frentes pioneiras dos seringueiros e garimpeiros. A medida teria sido inconstitucional, diz o governo estadual, porque não respeitou a posse dos índios nas terras que se encontravam permanentemente localizados.

Em outra frente, a Funai argumenta que o governo não ser legítimo possuidor da terra em discussão, sendo que a região é indígena e, portanto, pertence à União. Para o governo federal, Mato Grosso não provou seu domínio certo e incontestável sobre a área e que não pode haver direito adquirido à propriedade de terras habitadas por indígenas.

Na ACO 366, de 1987, o Mato Grosso questiona a demarcação das terras indígenas dos povos Nambikwara. A ação também é movida contra a Funai e a União e pede indenização pela inclusão de áreas que, de acordo como o governo local, não seriam de ocupação tradicional indígena.

Relator das ACOs 362 e 366, o ministro Marco Aurélio Mello defende que o marco temporal não seja tratado no julgamento do STF. “Eu sigo as balizas do processo. O Estado pretende a indenização e é disso que vamos tratar. O STF não atua como órgão consultivo. Não podemos extrapolar. Agora, o plenário tem sido uma caixinha de surpresa”, disse.

Nos últimos dias, representantes da Funai e ruralistas têm procurado diretamente os ministros para tratar da questão. Só nesta terça (15/8), os ministros Edson Fachin, Marco Aurélio e Alexandre de Moraes terão audiências sobre o julgamento.

O caso também mobilizou a Defensoria Pública da União. O Grupo de Trabalho de Atendimento a Comunidades Indígenas divulgou nota pública para demonstrar “preocupação” com a situação dessas áreas indígenas que estarão em discussão no STF. A DPU contesta a posição da Presidência da República, expressa em parecer, “de tornar vinculante, como se lei fosse, a inconstitucional e controvertida tese conhecida como marco temporal”, atingindo diretamente “a efetivação de direitos e garantias fundamentais dos povos e comunidade tradicionais”.

“Tal teoria, que ganhou notoriedade em 2009, com o julgamento pelo Supremo do ‘Caso Raposa Serra do Sol’, retira direitos territoriais originários assegurados pelo artigo 231 da Constituição (e já reconhecidos constitucionalmente desde 1934) e por inúmeros tratados de direitos humanos ratificados pelo Brasil por meio de uma lista de ‘condicionantes’ sem previsão em qualquer texto legal” – ressalta a manifestação da DPU.

Em outubro de 2013, o plenário do STF confirmou a validade de 19 salvaguardas adotadas no processo (PET 3.388) que manteve a demarcação contínua da terra indígena Raposa Serra do Sol. Mas essas condicionantes não teriam efeito vinculante. Ou seja, não seriam aplicadas automaticamente aplicadas para outros litígios semelhantes.

Marco temporal

Em artigo publicado na Folha de S.Paulo no domingo (13), o professor titular da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo José Afonso da Silva e a antropóloga e professora titular aposentada Universidade de Chicado e da USP Manuela Carneiro da Cunha argumentaram que a tese firmada pelo Supremo no julgamento de Raposa Serra do Sol não deve ser ampliada para outros casos como se tivesse efeito vinculante.

“A ‘deliberada intenção’ de generalizar as condicionantes da Raposa Serra do Sol, apregoada pela AGU, não pode, portanto, se sustentar”, escreveram os dois professores. “Trata-se de interpretar abusivamente que os direitos territoriais dos índios assegurados pela Constituição de 1988 só se aplicam aos que estavam em suas terras no dia da promulgação de nossa lei maior, 5 de outubro de 1988”, acrescentaram.

A Defensoria Pública da União também contestou a tese que estabelece o dia 5 de outubro de 1988 como marco para reconhecimento do direito dos índios às terras. “O reconhecimento de tal tese importaria em negativa histórica dos processos quase sempre violentos e clandestinos, mas com ampla participação de agentes do Estado, que resultaram na espoliação desses povos de seus territórios, em benefício de interesses privados de poucos indivíduos e famílias. Conforme reconhecido pelo Poder Executivo no Relatório da Comissão Nacional da Verdade, tal processo de espoliação foi especialmente intenso e violento durante o regime autoritário que vigorou no período imediatamente anterior a 1988”, ponderou a DPU em nota.

“Tal instrumental jurídico promove verdadeiro esvaziamento dos marcos legais que garantem a titulação de territórios indígenas ao impor a essa população – historicamente fragilizada – o difícil ônus de comprovar a origem do seu direito de ocupação sobre os territórios, atentando-se inclusive contra o cumprimento das disposições da Convenção 169 da OIT, que possuiu natureza supralegal, e por tratar-se de tratado de direito internacional precisa ser implementada sem restrições”, acrescentou a defensoria.

Fora da pauta

Nesta terça-feira, à véspera do julgamento, a Presidência do Supremo retirou da pauta de julgamentos a ACO 469. Esta ação foi protocolada pela União e a Funai em 1994 contra o governo do Rio Grande do Sul e envolve a Terra Indígena Ventarra, do povo Kaingang.

A ação aponta que durante a política de confinamento dos indígenas em reservas diminutas, os Kaingang foram expulsos de sua terra tradicional, à qual só conseguiram retornar após a Constituição de 1988, com a demarcação realizada somente na década de 1990. Desde então, a Terra Indígena Ventarra está homologada administrativamente e na posse integral dos Kaingang.

O governo federal pede a “nulidade dos títulos de propriedade de imóveis rurais concedidos pelo governo do Estado incidentes sobre área indígena imemorialmente ocupada por índios Kaingang, bem como a reintegração dos índios na posse das referidas terras”.

Fonte: Jota