Remédios sem eficácia comprovada contra a covid-19 podem causar resistência bacteriana

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A Anvisa proibiu os medicamentos receitados por Bolsonaro

O uso de remédios sem comprovação científica contra a covid-19 — incentivado até por autoridades, como o presidente Jair Bolsonaro — preocupa especialistas, que veem risco de reações adversas, resistência bacteriana (com o surgimento de doenças como supergonorreia) e efeitos desconhecidos em longo prazo. Entre os mais buscados, estão a hidroxicloroquina, remédio para malária, os antiparasitários ivermectina e nitazoxanida e o antibiótico azitromicina.

Apesar do alerta de especialistas, o Ministério da Saúde lançou este mês o TrateCov, aplicativo que estimula médicos a prescreverem esses medicamentos e indica cloroquina e antibiótico até para bebês. O ministro Eduardo Pazuello, porém, nega que a pasta recomende esses remédios. O aplicativo foi tirado do ar nesta quinta-feira (21).

Conforme o Conselho Regional de Farmácia de São Paulo, todos esses medicamentos necessitam de prescrição médica, mas a ivermectina e nitazoxanida não precisam de retenção de receita, exigida para a compra de azitromicina. “Já o controle e retenção de receita são obrigatórias para os medicamentos cloroquina e hidroxicloroquina, pela publicação da RDC 405/2020 da Anvisa, de julho do ano passado, que se mantém válida para os dois medicamentos citados e possui critérios para a prescrição e dispensação”, informa.

Ana Cristina Gales, consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia e coordenadora da pós-graduação em infectologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) diz que, além de estudos terem provado que não há eficácia das substâncias, é impossível garantir que não haja consequências futuras.

— A combinação de hidroxicloroquina e azitromicina foi um tratamento suspenso por causar arritmia, efeito colateral que é um risco para pacientes com doença cardiológica e estava sendo dado justamente para uma população com fator de risco. A gente não sabe dos impactos do uso estendido por semanas e até meses, porque os estudos foram feitos para uso por período curto. Da ivermectina, por exemplo, sabemos que ela se acumula no pulmão, mas a gente não sabe o efeito em longo prazo — explica.

Diretora da Associação Brasileira de Alergia e Imunologia, Ekaterini Simões Goudouris diz que qualquer medicamento deve ser prescrito a partir da verificação dos riscos e benefícios para o paciente. Ela alerta que, no caso da automedicação, há risco para quem já faz tratamento para outras doenças.

— Tem de desconstruir a ideia de que se não fizer bem, mal não faz. Se os benefícios não estão estabelecidos, não justifica submeter a um risco, mas, infelizmente, vários médicos estão fazendo prescrição e há pessoas se automedicando. Tem gente usando esses remédios toda semana para prevenir covid. Usam durante dois, três meses e não se dão conta da interação medicamentosa — alerta.

Balanço da plataforma Consulta Remédios apontou que os medicamentos mais buscados em 2020 foram ivermectina, com 9,2 milhões de buscas, azitromicina (3,5 milhões) e hidroxicloroquina (2,7 milhões). Em relação a 2019, houve alta de 1.201,49% nas buscas por ivermectina, 53,58% por azitromicina e 2.826,82% por hidroxicloroquina.

Já levantamento da ferramenta Farmácias APP, de vendas online de produtos de saúde e beleza, apontou aumento de 100,3% no faturamento dos amebicidas, que engloba a nitazoxanida, em novembro de 2020 em relação a agosto. No caso dos anti-helmínticos (ivermectina), o incremento foi de 35,3% no mesmo período. Os antimaláricos apresentaram queda de 39,6%.

Estudos comprovaram que medicações não eram eficazes

Quando a pandemia teve início e ainda não se sabia o que fazer para salvar os pacientes, profissionais de saúde tentaram administrar o que havia de disponível e pesquisas foram iniciadas com o objetivo de reverter os impactos devastadores da doença. Infectologista do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), Maria Cláudia Stockler explica que a tentativa de intervenção acompanha a história da humanidade, desde a pajelança ao uso de sanguessugas, mas que a medicina busca inovação com eficácia e testes já apontaram que essas medicações não funcionam contra o vírus.

— Essa doença, por ser nova, não tem, ainda, critérios prognósticos. O que a gente sabe de tratamento para covid? Dexametasona para quem precisa de oxigênio suplementar. O remdesivir tem impacto para pacientes graves, mas é muito caro. Todo o resto não é nada. Em sites americanos e europeus, não há recomendação para usar azitromicina, hidroxicloroquina e ivermectina — argumenta.

No Brasil, a Coalizão Covid-19, que reúne hospitais e institutos de pesquisa do país, realizou estudos com hidroxicloroquina e azitromicina, associadas ou não, e os resultados não apontaram eficácia.

— No primeiro deles, em pacientes hospitalizados com covid-19 de gravidade moderada, verificamos que hidroxicloroquina ou azitromicina são incapazes de melhorar a evolução clínica dos pacientes. Nos grupos que receberam hidroxicloroquina, com ou sem azitromicina, houve aumento no risco de alterações de exames laboratoriais refletindo lesão do fígado e alterações do eletrocardiograma que podem predispor a arritmias cardíacas. O segundo estudo avaliou o efeito da azitromicina em pacientes hospitalizados com formas mais graves de covid-19. Verificamos que não havia efeito algum da azitromicina para esses pacientes — afirma Alexandre Biasi, superintendente de pesquisa do HCor e membro do grupo.

Segundo Biasi, o grupo não fez estudos com ivermectina e nitazoxanida, mas pesquisas realizadas ainda não têm dados robustos para que a indicação seja feita.

— Em relação à ivermectina, não há trabalhos randomizados publicados. Alguns dados disponíveis de estudos no Irã, no Egito e na Índia sugerem potencial benefício, mas não há como avaliar conclusivamente os resultados porque ainda não estão publicados. A nitazoxanida também tem sido estudada por ter efeito in vitro. Mas ainda se desconhece o real benefício nas infecções pelo Sars-CoV-2. Estudo brasileiro sugere redução modesta da carga viral nos pacientes que receberam a medicação, porém, não houve efeito nos sintomas — diz ele.

O estudo sobre o vermífugo foi divulgado em cerimônia pelo Planalto apenas com dados parciais e com a apresentação de um gráfico de barras retirado de um banco de imagens.

Opinião das empresas

O Estadão entrou em contato com farmacêuticas que trabalham com essas medicações e solicitou posicionamento sobre o uso das substâncias. Vitamedic e EMS não se posicionaram sobre a ivermectina, assim como a Eurofarma, que preferiu não comentar sobre o uso da azitromicina. Em nota, o laboratório Aché, que tem azitromicina em seu portfólio, informou que “valoriza e respeita a prescrição médica, recomendando que nenhum medicamento seja administrado pelo paciente sem a orientação do médico”.

Sobre a nitazoxanida, a FQM Farmoquímica, detentora do registro do medicamento Annita, também recomenda que o medicamento seja tomado só com indicação médica. Em relação aos estudos, disse ter apoiado iniciativas que seguem formalidades científicas e que, em uma primeira fase, “dados bastante positivos comprovaram a ação antiviral da nitazoxanida contra o vírus SARS-Cov2 (amostras do vírus circulante no Brasil) em estudos in vitro”.

A farmacêutica disse que “os ensaios clínicos ainda não foram disponibilizados para conhecimento público por formalidades éticas”. Também informou que apoiou um estudo de fase 2 que foi concluído recentemente e que foi submetido para publicação em uma revista científica internacional, mas que os dados ainda estão em sigilo e serão divulgados quando a revista permitir.

“A FQM nesse momento está concentrando todos os seus esforços para a aprovação, execução e conclusão da fase 3, que permitirá, às autoridades regulatórias e comunidade médica, as evidências científicas necessárias para disponibilizar o medicamento para tratamento da população com covid-19”. A reportagem entrou em contato com o Ministério da Saúde e o da Ciência, Tecnologia e Inovações também solicitando um posicionamento, mas as pastas não responderam.

O problema do excesso de antibióticos

Em julho do ano passado, pesquisadores das universidades Complutense de Madrid (UCM) e de Barcelona (UB) divulgaram um estudo que identificou um mecanismo das bactérias capaz de espalhar genes resistentes a antibióticos com eficiência até 10 mil vezes maior que a conhecida até então. Segundo a UCM, a pandemia deve aumentar essa proteção das bactérias por causa do uso em larga escala desses medicamentos. Um dos riscos dessa situação é a resistência bacteriana.

— Após alguns anos de início do uso de todos os antibióticos acabam surgindo bactérias resistentes, limitando a utilidade dos medicamentos e colocando pacientes com infecções bacterianas sob risco de serem tratados com medicamentos ineficazes. Quanto mais disseminado é o uso de um antimicrobiano, maiores as chances de surgirem bactérias resistentes e reduzirem o benefício da medicação — explica Alexandre Biasi, superintendente de pesquisa do HCor e membro do grupo Coalizão Covid-19 Brasil.

A azitromicina, antibiótico que tem sido em pacientes infectados pelo vírus, pode sofrer com esse processo, segundo Biasi.

Outra preocupação é a dificuldade para o tratamento de doenças como a gonorreia, que já apresenta uma variante resistente a antibióticos, também chamada de supergonorreia. Em setembro, o Departamento de Saúde Pública da Inglaterra pediu que a população praticasse sexo seguro após alta de 26% nos casos de gonorreia entre 2018 e 2019. Segundo o boletim, a maior prevalência da doença foi entre homens gays, bissexuais e outros que praticam sexo com homens, além de mulheres heterossexuais. Juntos, os grupos representaram um aumento superior a 10 mil casos.

Ainda em janeiro de 2019, o mesmo departamento já havia alertado para o surgimento de uma nova gonorreia que seria resistente a antibióticos e foi registrada em duas pacientes heterossexuais. “Enquanto esse tipo de resistência é incomum, já existiram casos em outros países. Encontrar esse tipo de gonorreia extensivamente resistente aos antibióticos serve como um lembrete importante da necessidade de se praticar o sexo seguro”, dizia o comunicado.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Centro para Controle e Prevenção de Doenças americano (CDC, na sigla em inglês) já trazem informações sobre o tipo resistente a antibióticos em seus sites, com atualizações feitas em 2020.

— Essa é uma preocupação real. Inclusive a OMS publicou alerta sobre o surgimento de bactérias resistentes a antibióticos na pandemia. Uma das ameaças atuais é a bactéria causadora da gonorreia, que está se tornando resistente aos antibióticos comumente usados, o que está se chamando de supergonorreia. Com o uso indiscriminado de antibióticos na pandemia, a resistência a essa classe de medicamentos tem aumentado — descreve Biasi.

Fonte: Gaucha ZH RBS