Podia ser meu filho: os jovens mortos por policiais no RJ

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carro_costa_barros“Mas você será executado à luz do dia filho. Na porta de casa. E eu vou lavar seu sangue.Você será metralhado com 50 tiros. Você e seus amigos pretos. Porque sim”.

14/12/2015

Por Luara Colpa*

 

Estou a parir meu filho preto. Na maca, onde a enfermeira impaciente empurra minha barriga, me livro da dor pensando em seu futuro:

De uniforme e banho tomado, ele desce a ladeira.

– Cuidado ao atravessar a rua! (Ele olha pra trás e sorri)

– Não esquece a merendeira, hein, filho? – Tá mãe!!

– Esteja bem vestido (para não te confundirem… com ladrão).

– Não erga a cabeça pro polícia.

Familiares dos jovens assassinados pela PM com 111 tiros | Foto: Fernando Frazão/ABr

Vou franzindo a testa e abaixo o tom de voz:

– Ande com carteira de trabalho no bolso e apresente-a sempre que abordado.

– Se quiser ter o cabelo colorido, será confundido com bandido. Se quiser homenagear seus ancestrais e fazer dreads e penteados, será chamado de vagabundo.

– Você poderá apanhar na cara. – Por que mãe? – Porque sim, não revide.

– Você sofrerá revistas vexatórias todas as semanas da sua vida. Porque sim.

– Você será chamado de macaco, “esse preto”, “de cor”.

– Não ande em grupos para não ser confundido com arrastão.

– Estude filho, vão falar que as cotas o salvou, que é incapaz. Não dê ouvidos a eles.

– Se você se esforçar muito no trabalho, será chamado de “moreninho até que é esforçado” e mesmo que te explorem e expurguem, e que seu salário seja menor que o de todos… Usarão seu exemplo, pra justificar a meritocracia canalha que nos imputam.

– Em qualquer furto na empresa você é o suspeito, filho. Sim.

– Você será mal visto o resto da sua vida na família da sua namorada branca. Porque sim também..

Sua mãe vai sofrer violência obstétrica no hospital. Porque é preta. Você vai nascer na contramão da vida. Porque alguma igreja um dia disse que não tínhamos alma.

Que nossa cultura era inferior e mediram nossos dentes e nossas canelas. E nos deram um terço pra tentarmos nos redimir de termos nascido nessa cor.

Quando acharam oportuno, vestiram nossos turbantes e se apropriaram da nossa capoeira. Quando não nos queriam mais, nos forjaram “livres” na Lei do Sexagenário. E então fomos expulsos da escravidão para a escravidão real.

Aqui estamos. Somos a história dos centros urbanos, filho. Fomos expulsos do modelo de cidade e do convívio entre pessoas. Nunca fomos pessoas.

Da periferia para periferia seguimos, expurgados.

Não nos perguntaram onde construímos nossa vida, nossa raiz. Somos sem estória. A cada despejo, fomos para a região metropolitana que nos colocavam. Em cada plano de habitação que meia dúzia de engomados brancos escreveram, fomos encaixotados nos predinhos de 40m². Bem longe. Longe dos olhos dos gringos.

Taparam nossas casas com tapumes para a Copa do Mundo. Botaram camburão na nossa quebrada, para nos lembrar que desde “o fim” da escravidão, não sabem o que fazer para tampar nossa existência.

Vão te dizer que mesmo em estado de sítio, você tem direito de ir e vir no seu país (que seus ascendentes construíram lajota por lajota. Paralelepípedo por paralelepípedo).

Mas você será executado à luz do dia, filho. Na porta de casa. E eu vou lavar seu sangue.

Você será metralhado com 50 tiros. Você e seus amigos pretos. Porque sim. Porque fazem parte da parcela da população que tem que ter regras para estar vivo. Que é achincalhado desde o nascimento.

Nos exterminarão todos os dias, todos os dias “um crime isolado”.

E jogarão a culpa no policial noiado, no indivíduo sob pressão, na legítima defesa. A sociedade não reconhecerá que são todos cúmplices da sua morte.

Eles estão certos, agem em “legítima defesa”. Te avisei para não sair sem a carteira de trabalho filho. Aliás, nem deu tempo de mostrar, né? Te avisei pra não encarar o polícia… Também não precisou. É, não deu tempo.

Vamos entrar pra estatística, filho.

Eles só tem a televisão. Só tem a visão longínqua e deturpada do que somos. Eles desligarão a TV quando incomodar. Eles não sabem de mim, nem de você.

Só mais uma mulher sozinha parindo sob violência.

Só mais um preto metralhado. O Deus branco que nos perdoe, somos sem alma.

‪#‎PodiaSerMeuFilho‬

 

* Luara Colpa é Advogada e militante, 28 anos.