O Procurador de Justiça, a Ditadura do Politicamente Correto e a Merda

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Por Eduardo Luiz Santos Cabette (*)Em dedicação à liberdade de expressão e à verdade (in memoriam) e em homenagem do Procurador de Justiça Rômulo de Andrade Moreira.

Recentemente um ilustre membro do Ministério Público, comprometido com a constitucionalidade e a legalidade e não com o politicamente correto, com as aparências e simbolismos ou com o apelo midiático, manifestou-se sobre a decisão do STF que perverte o conceito de trânsito em julgado, estabelecendo sua ocorrência mesmo quando ainda pendentes recursos nas vias extraordinárias (Especial ou Extraordinário).

Comprometido, como já frisado, com a legalidade e a constitucionalidade, obviamente criticou fortemente a decisão que viola frontalmente o duplo grau de jurisdição em sua conformação ampla e a presunção de inocência. Fez isso num programa midiático e o apresentador confrontou os argumentos jurídicos e racionais bem postos pelo estudioso e operador do Direito com o “supra sumo da sapiência humana”, qual seja, a “maravilhosa”opinião pública.

A resposta certeira do Procurador foi que a “opinião pública é uma merda”. Pois é, a opinião pública é mesmo uma merda. Vamos primeiro imaginar o que diria um cientista (que é o que é o mencionado Procurador na área jurídica), se alguém o confrontasse em seus argumentos técnicos, baseados em pesquisas e estudos de muitos anos em oposição a uma suposta “opinião pública”, formada no “ouvir dizer”, no “disse me disse”, no “ouviu o galo cantar não se sabe onde”? Pois é…

Agora vamos a alguns exemplos históricos: segundo a opinião pública Jesus Cristo deveria ter sido crucificado e humilhado e foi! Segundo a opinião pública, durante muito tempo mulheres eram consideradas seres inferiores, inclusive intelectualmente e isso influenciou o Direito. Segundo a opinião pública insuflada por discursos inflamados na Alemanha nazista, judeus, gays, ciganos e outras pessoas inferiores deveriam ser eliminadas e o foram. Segundo a opinião pública direitos humanos são direitos de bandidos, mesmo que isso signifique abrir mão da própria condição humana. Creio que já seja o bastante.

Fato é que essa propalada “opinião pública” é menos que merda. É, na verdade, algo inexistente, uma figura de linguagem etérea que é utilizada sempre que se pretende dar ares de legitimidade a qualquer espécie de barbaridade ou imbecilidade. Afinal, quem dita ou quem é o dono, quem constrói essa tal “opinião pública”? Com que base informacional ela se erige e se legitima a ditar as regras de tudo?

Não se desconhece que a “opinião” (“doxa”), embora desprovida de maiores aprofundamentos e inconsistente inicialmente (vide o que dizem Aristóteles e Platão a respeito), deve ser levada em consideração como ao menos um ponto de partida para reflexões mais profundas. No entanto, isso é muito diverso de adotar seu norte como um dogma. Mais diverso ainda é coartar a liberdade de expressão e crítica, de maneira que nem mesmo certas palavras mais fortes possam compor um discurso contra essa propalada “opinião pública”.

O grande problema é que não somente no Brasil, mas como um fenômeno mundial, vão surgindo espécies de gurus da mídia que se apresentam inclusive como supostos “especialistas” e divulgam “opiniões” que ganham as massas por seu apelo emocional, simplista e desinformado, semeando a ignorância a tal ponto que o errado se torna certo e o certo, quando dito, assusta porque parece errado. Assim ocorre aquilo que Black denominou de “predominância da impostura”. [1]

Mas, será que a palavra “merda” não seria muito forte ou grosseira para andar na voz de um Membro do Ministério Público em um programa midiático? Talvez num país onde a Democracia engatinhe, onde o “politicamente correto” domine as pessoas e instituições e as faça tremer diante de uma crítica mordaz e sincera. Diante, principalmente, da verdade escancarada. Nessas condições pessoas e instituições são por demais suscetíveis. Sua debilidade intelectual e moral é digna de piedade.

Já na Universidade de Princeton, é possível que um filósofo professor emérito edite uma obra intitulada “On Bullshit”, traduzida no Brasil pela Editora Intrínseca, por Ricardo Gomes Quintana como “Sobre Falar Merda”. [2] Isso sem nenhum susto ou suscetibilidade extremada. A questão certamente é de maturidade intelectual, democrática, expressiva etc. Na puerilidade uma palavra só pode ser entendida como um “palavrão”, como uma “ofensa” e não pensada no contexto da crítica, ainda que ferina. Especialmente no contexto da liberdade de expressão e pensamento. Essa é a puerilidade, a infantilidade de nossa suposta Democracia que engatinha. E ao engatinhar se convola em uma “Ditadura do Politicamente Correto”. Uma “Ditadura” ridícula, burra, contraproducente, autodestrutiva, uma verdadeira “Ditadura de Merda”.

Voltemos a Frankfurt e entendamos o contexto crítico da manifestação do nobre Procurador. Para o filósofo de Princeton há uma grande diferença entre dizer a verdade, falar mentira e “falar merda”. Falar merda é muito pior do que mentir descaradamente. Isso porque quem mente tem ao menos uma preocupação com a verdade, nem que seja aquela de rodeá-la, enredá-la em um nó de fraude. Mas, o mentiroso ao menos se preocupa com a verdade, ainda que seja para adulterá-la de forma vil. Por outro lado, aquele que se contenta em “falar merda” produz uma “verborreia” irresponsável sem medir qualquer consequência. Esse é o âmago da “opinião pública”, isso quando ela realmente existe. São “opiniões” desprovidas de qualquer compromisso com a busca da verdade, do conhecimento correto. Abre-se a boca para soltar alguma coisa, uma coisa qualquer, pouco importa o que seja. Os intestinos são mais seletivos e limitados. A boca da “opinião pública” não tem limites, dela tudo pode sair. Nas palavras de Frankfurt:

“É essa falta de preocupação com a verdade – essa indiferença em relação ao modo como as coisas realmente são – que considero a essência do falar merda”. [3]

E mais adiante:

“Tanto quem mente quanto quem fala a verdade atuam em campos opostos do mesmo jogo, por assim dizer. Cada um reage aos fatos como os entende, embora a reação de um seja guiada pela autoridade da verdade, enquanto a reação do outro desafia essa autoridade e se recusa a satisfazer suas exigências. O falador de merda as ignora como um todo. Ele não rejeita a autoridade da verdade, como faz o mentiroso, e opõe-se a ela; simplesmente, não lhe dá a menor atenção. Em virtude disso, falar merda é um inimigo muito pior da verdade do que mentir”. [4]

Entretanto, somente quando há maturidade suficiente e até mesmo um mínimo de cultura para sopesar o significado contextual de palavras que podem inclusive ter uma aplicação em uma obra erudita, embora possam, em outro contexto, serem usadas como ofensas e palavrões, é que se poderá dizer que deixamos de engatinhar seja intelectual, moral ou democraticamente, especialmente no que diz respeito à liberdade de expressão e crítica. Certamente, diante da reação perante a manifestação do nobre Membro do Ministério Público, fato é que estamos muito, muito longe disso. Infelizmente pode-se dizer que tudo isso indica que estamos mesmo na merda!

Referências

BLACK, Max. The Prevalence of Humbug. Ithaca: University Press, 1985.

FRANKFURT, Harrry G. Sobre Falar Merda. Trad. Ricardo Gomes Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2005.

[1] BLACK, Max. The Prevalence of Humbug. Ithaca: University Press, 1985, “passim”.

[2] FRANKFURT, Harrry G. Sobre Falar Merda. Trad. Ricardo Gomes Quintana. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2005, “passim”.

[3] Op. Cit., p. 39.

[4] Op. Cit., p. 62.

Eduardo Luiz Santos Cabette

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia e Professor Universitário

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Criminologia e Legislação Penal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial na graduação e na Pós-graduação da Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Ética