O desmoronar de um Mito – Por Diego de Paiva Vasconcelos

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Mitos são próprios da cultura Grega e consistiam em representações de mundo que permitiam a redução da extrema complexidade, ou melhor da absoluta incerteza através da produção de narrativas que permitiam explicar desde a origem do universo até mesmo e inevitabilidade dos desígnios de futuro. Os mitos são produções culturais que partem do não saber para a construção do “saber”. Os mitos e as lendas perderam sua força de produzir “verdades” a partir do encontra com as raízes do pensamento ocidental. Os mitos não resistiram a força da verdade filosófica e científica e se refugiaram no imaginário como a lembrança distante de nosso não saber diante do mundo.

Feitos estes comentários, passo a ordem do dia: a renúncia de Moro. Diante de um cenário intransparente e obscuro, o fato aumentou o grau de incerteza e levou o sistema político ao máximo patamar da desagregação estrutural e – por que não(?) – ao desarranjo institucional da mais elevada magnitude. Isso, que no mercado financeiro é traduzido como queda da bolsa, e, na política, como desarranjo da base de apoio.

O problema que temos para reflexão é como um globo nas mãos de Escher. “De te fabula narratur“, escreveu Horácio na suas Sátiras. Na verdade falava de um interlocutor imaginário porém presente. De quem falam as fábulas? As fábulas falam de ti, falam de nós.

Nossa política não se encontrava apta a formar maiorias e se pautou por um discurso sobretudo de ódio e guerra a valores negativos como, por exemplo, a corrupção ou ideais identificados como de esquerda. Bolsonaro incorporou esses sentimentos e transformou-os em agenda. Moro era um símbolo (do combate à corrupção) e, porquanto, um instrumento de produção de maiorias. Sua saída já teve e terá muitas repercussões em diversos âmbitos como na economia, nas finanças, na política e no direito.

O quadro como todo é preocupante. A história recente do país mostra que decisões de amplo espectro estão efetivamente obstadas pelo impasse  político. O discurso de combate a corrupção não é mais capaz de sozinho oferecer alternativas. Desde 2016 a governabilidade do país está obstaculizada por uma profunda divisão social, ou melhor, entre visões de mundo absolutamente diferentes e irreconciliáveis. Não há agenda política no país e, pior, se está a beira de um novo colapso político que pode, eventualmente, findar em novo impeachment.

As acusações de Moro nos modos e limites apresentados foram absolutamente vagas e imprecisas. Faltou responder “quem, onde e quando”. Ao dizer que o Presidente se valeu do cargo para interferir nas atividades do Ministério que ocupava e da Polícia Federal, Moro o acusa de ter violado regras jurídicas comezinhas a qualquer Constituição moderna. O problema é que jamais disse quando isso aconteceu e como isso aconteceu. Saber quando se deram os fatos, se ontem ou hoje, é de grande relevância. Isso porque, se os fatos narrados aconteceram ou vinham acontecendo há mais tempo e só agora vem a público, o Ministro pode ter confessado crime de prevaricação e seu próprio crime de responsabilidade. Nenhuma ordem hierárquica pode obrigar a obediência de ordens ilegais. Essa é a lição que se pode tirar do julgamento Adolf Eichmann em Jerusalém.

Caso Moro tenha dito verdade importa, ainda, saber quando, como e em que condições a “verdade”aconteceu”. O acusador pode, eventualmente, também ter violado a lei nessa hipótese.  Sem embargos, estamos diante de uma grave acusação de crimes de responsabilidade supostamente cometidos pelo Presidente por incorrer nas prescrições dos arts. 4 (II, IV e V) , 8 (VII) e 9 (de 3 a 7) e isso exige apuração.

O discurso do ex Ministro foi um verdadeiro libelo acusatório. A fala de Moro imputa ao Presidente da República uma série de condutas descritas na lei como criminosas. São crimes de responsabilidade os atos atentatórios à Constituição Federal. Das palavras do ex Ministro se pode retirar recortes de conduta que atentam contra a segurança interna do país, à probidade na administração e também dá conta  do uso de ameaça e/ou intimidação contra funcionário público para coagí-lo a proceder ilegalmente, como também de expedir ordens ou fazer requisição de forma contrária às disposições expressas da constituição e da lei; da infração da constituição e da lei no provimento dos cargos públicos, de outras normas legais e, por fim, de proceder de modo incompatível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo de Presidente da República.

A Lei 1.079 que disciplina os crimes de responsabilidade é muito clara ao prescrever tais condutas. Independente de onde resida a verdade, a acusação deve ser apurada e pode, em tese, ter repercussão sobre quaisquer das partes ou sobre ambas. A normalidade institucional exige apuração imediata da conduta de ambos os atores políticos envolvidos na celeuma.

Grande estudioso sobre os processos de impeachment na América Latina, Aníbal Pérez-Liñan em sua obra “Presidential Impeachment ” alerta para o fato que ao sul dos Trópicos o processo de impeachment presidencial é utilizado, exclusivamente, como instrumento de controle político e, ao meu ver, a partir da sua obra, como verdadeiro substituto funcional de mecanismos como Recall, utilizados, efetivamente, para promover rearranjo institucional. Como dito por oportunidade de um outro e semelhante estado de coisas, ainda no ano de 2016, expliquei ao médico e apresentador, Aparício Carvalho, que o processo de impedimento do presidente da República é um procedimento jurídico no modo de procedimentalização, porém político em seu mérito como podem assistir no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=ziZ2UCTXo7s. Com isso, apenas digo que o mérito do processo, aquilo que determina  a vitória ou a derrota do acusado é a base política no parlamento: tem maioria/não tem maioria. O atual governo não demonstrou ainda sua capacidade de formar maiorias no parlamento e isso torna o quadro ainda mais grave, pois ainda que possa refutar todas as acusações de Moro o Presidente para se manter no cargo deve também produzir maiorias.

(*) Diego de Paiva Vasconcelos é Professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Rondônia, Doutorando em Direito pela UFRJ, Pesquisador membro do Centro di Studio Sul Rischio e Advogado.