Eu quero você, como eu quero! Por: Héverton Aguiar (*)

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Quantas festas, quantas paixões tórridas foram embaladas pela melodia da música Como eu Quero, do grupo Kid Abelha e os Abóboras Selvagens? Lançada em 1984 no primeiro disco da banda – Seu Espião, escrita por Paula Toller e Leoni, a canção que embalou corações apaixonados e motivou juras de amor eterno, traduz na verdade uma triste história de manipulação para mudança da personalidade do então baterista da banda, exercida por sua namorada, que fazia pressão para que ele largasse a vida de artista, saísse da banda e assumisse o modelo por ela estereotipado. “…tire essa bermuda que eu quero você sério…” Conta Érika Freire, no blog Letras.mus.br, que a letra da música expressa a preocupação dos amigos que a compuseram com a relação manipuladora que ele estava sendo vitimado.

O drama da vida real, vivido pelo artista, é repetido cotidianamente, nas mais diversas relações amorosas, independentemente do sexo, gênero ou idade dos amantes. É a pratica de uma forma de violência velada, sútil, que se desenvolve num poderoso processo silencioso que retira do indivíduo a sacralidade de sua existência e de sua condição humana e o faz deixar de ser quem ele é para ser o que o ser por ele amado quer que ele seja.

Essa conduta nefasta que atenta contra a individualidade da pessoa humana, é conceituada  pelo Padre Fábio de Melo, em seu recomendável livro Quem me Roubou de Mim?, como sequestro da subjetividade, situação em que, como explica o sacerdote filósofo, é toda relação que priva o ser humano de sua disposição de si, de sua pertença, ou seja, a capacidade de administrar a própria vida,(…) A partir desta forma de sequestro nasce o mal-estar psicológico, o sofrimento que não tem localidade no corpo, mas possui o poder de adoecê-lo, fragilizando o ser que sofre, uma vez que o sequestro lhe retira da centralidade de suas próprias decisões. Sem o controle de suas decisões ele se subjuga e passa a aceitar que o melhor para si é o que for desejado e idealizado pelo amante/manipulador que o faz acreditar que quer sempre o seu melhor “…longe do meu domínio cê vai de mal a pior, vem que eu te ensino como ser bem melhor…”

O professor de filosofia da UFRJ, Renato Nunes Bittencourt – ao estudar o Amor Fati – Amor ao Destino de Nitzsche que teve sua vida pessoal marcada por uma crônica solidão amorosa, na constituição de sua filosofia desenvolveu o conceito que traduz a adesão incondicional ao existir e a afirmação da vida como ela é, e não uma mera aceitação de sua realidade – aplicando-o na abordagem sobre as relações afetivas, aponta o professor que usualmente tendemos a querer melhorar radicalmente as pessoas com as quais convivemos, e na maioria das vezes buscando molda-las de acordo com nossas próprias valorações. Pois bem! Quando assim agimos, passamos a identificar o que nos desagrada no outro e damos início a um ferrenho combate para transformá-lo naquilo que elegemos como ideal; sem, contudo, levarmos em consideração que talvez essas características sejam as que estabelecem a singularidade da pessoa que convivemos. Com esse comportamento, passamos a exercer opressão sobre nosso (a) parceiro (a), exigindo mudanças de acordo com nossas conveniências pessoais. Essa circunstância enfraquece a força amorosa e exaure a vitalidade do relacionamento saudável. Quando nos lançamos na busca de modificar o outro – com quem convivemos amorosamente, estamos em verdade fazendo um espelho de nós mesmos, subtraindo assim a singularidade e a subjetividade da pessoa. “…o que você precisa é de um retoque total, vou transformar o seu rascunho em arte final…”

Os relacionamentos amorosos são permeados de dificuldades inerentes à complexidade do ser humano, que são amplificadas por suas singularidades, fragilidades, inseguranças, anseios, sonhos e perspectivas distintas; para que a relação possa ser virtuosa, há a necessidade da presença do amor que transforma e dá novo sentido à vida dos que o sentem. Mas é mister que esse sentimento seja real e se traduza no querer o bem da pessoa, que respeite sua natureza, sua maneira de ser; e não um amor egoísta, aquele que deseja ter o outro por perto apenas para satisfazer seus desejos, deturpando este poderoso sentimento e tornando o ser tido como amado em um verdadeiro refém de suas vontades. Eis então a pedra angular para convivência harmoniosa com quem se ama – O Respeito a sua individualidade! E esse respeito se caracteriza na aceitação incondicional do modo ser da pessoa que convivemos, de aceitarmos suas características essenciais – mesmo que não nos sejam agradáveis, posto que não encontraremos sucesso amoroso sem superação dos entraves existenciais.

O poeta libanês Khalil Gibran, em seu apoteótico livro O Profeta, de 1923, quando fala com Al-Mitra sobre o casamento, sobre os relacionamentos amorosos disse: “…Que hajam espaços na vossa junção, e deixem que os ventos do céu dancem entre vocês. Se amem um ao outro mas não façam do amor uma prisão. Deixem que seja antes um mar em movimento entre as margens das vossas almas. Encham as taças um do outro mas não bebam em uma só taça. Deem um ao outro do vosso pão mas não comam do mesmo pedaço. Cantem e dancem juntos e sejam alegres, mas deixem que cada um de vocês fique só, tal como as cordas da lira estão separadas e no entanto vibram na mesma harmonia. Entreguem os vossos corações, mas não a guarda um do outro. Porque só a mão da Vida pode conter os vossos corações. E estejam juntos, mas não demasiadamente juntos: os pilares do templo se erguem separadamente, e o carvalho e o cipreste não crescem na sombra um do outro”.

Viva seus amores e que esses amores sejam escolhas e não necessidades; viva-os sem abrir mão de suas identidades, posto que quem não tem a si em profundidade, jamais conseguirá ter em profundidade alguém!

“…Uuuhhh Eu Quero você como quero…”  Mas quero que você me queira como eu sou, do meu jeito e com meus avessos!

(*) Promotor de Justiça, pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal, pós-graduando em filosofia pela PUC/RS, estudante na Nova Acrópole, professor universitário e palestrante.