Bolsonaro pode ser responsabilizado por não vacinar a filha contra a Covid-19?

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“Minha filha de 11 anos não será vacinada”, afirmou o presidente da República Jair Bolsonaro (PL) em sua primeira live do ano, no dia 6 de janeiro. O presidente complementou o raciocínio: “Se quiser seguir o meu exemplo tudo bem, se não quer é um direito seu”. Será mesmo?

Na última semana, provocado pelo partido Rede Sustentabilidade, que requeria que Conselhos Tutelares verificassem se pais estão vacinando seus filhos, o ministro Ricardo Lewandowski determinou que os Ministérios Públicos Estaduais devem fiscalizar a vacinação de crianças e adolescentes.

Como já decidiu o STF, ninguém pode ser forçado a vacinar seus filhos, mas pais ou responsáveis podem ter de arcar com as consequências de suas escolhas por violação dos deveres inerentes ao poder familiar ou decorrentes da tutela ou guarda.

O presidente da República, então, poderia ser punido caso de fato não vacine Laura Bolsonaro, sua filha de 11 anos contra a Covid-19? Segundo especialistas ouvidos pelo JOTA, a resposta é positiva.

Um dos fundamentos para o acionamento na Justiça do presidente da República, e de outros pais que agirem com negligência, é o artigo 227 da Constituição — que imputa às famílias, ao Estado e à sociedade o dever de garantir o pleno acesso das crianças à saúde. Já o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) determina que é obrigatória a vacinação infantil nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.

O presidente Jair Bolsonaro chegou a declarar que havia conversado com Lewandowski e que ele teria “garantido” que a imunização infantil seria facultativa. Informação semelhante foi dada pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, ao apresentar o plano de vacinação de crianças com idade entre 5 anos e 11 anos no dia 5 de janeiro. Apesar do posicionamento do presidente e da pasta, de que a vacinação não é obrigatória, a imunização de crianças pode ser considerada, sim, obrigatória, segundo especialistas, quando se considera todas as normas de proteção às crianças.

Desta forma, os pais que se negarem a vacinar seus filhos, inclusive o presidente da República, podem ser multados, com valor que pode chegar a 20 salários mínimos, e, em casos mais graves, até perder a guarda das crianças. Neste caso, como não envolve uma questão penal, Bolsonaro pode ser processado pelo Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) perante o juízo da criança e adolescente do Distrito Federal, avalia Oscar Vilhena, professor de Direito FGV/SP e membro da comissão Arns de Direitos Humanos.

Vacinação obrigatória de crianças

Fernando Aith, diretor geral do Cepedisa/USP e membro-associado da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), explica que, conforme determina o parágrafo 1º do artigo 14 do  ECA, basta haver recomendação por autoridade sanitária para que a vacinação seja obrigatória para crianças. “Isso vale porque é uma doença [Covid-19] endêmica. Por exemplo, um pai que mora numa zona endêmica de febre amarela, é obrigado a vacinar o filho contra febre amarela. Um pai de São Paulo, onde não há endemia da doença, não é obrigado. Isso é o que o ECA preconiza”, diz.

Nesse sentido, Aith salienta que o entendimento de “autoridade sanitária” é amplo. “A autoridade sanitária pode ser desde o agente do posto de saúde, o médico, o enfermeiro, até o secretário de saúde, o prefeito da cidade ou o presidente da República”. Além disso, a recomendação da vacina pode ser feita por qualquer tipo de documento: desde uma receita assinada por um médico até portarias, decretos ou comunicados oficiais  — inclusive, este publicado pela Anvisa em 16 de dezembro de 2021.

artigo 227 da Constituição também determina que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida e à saúde”. Vilhena explica que este artigo é o único da legislação brasileira que “hierarquiza direitos”. Isso significa que é obrigação das famílias, do Estado e da sociedade garantir o pleno acesso às crianças e aos adolescentes a um direito que lhes é assegurado pela lei.

Uma decisão proferida pelo plenário do STF (Supremo Tribunal Federal) em 17 de dezembro de 2020 também abre precedente para que a imunização das crianças seja uma exigência feita aos seus responsáveis legais. A Corte estabeleceu nas ADIs 6.586 e 6.587  que a prerrogativa da adoção da obrigatoriedade da vacina não é só da União, mas também dos estados, dos municípios e do Distrito Federal. O ministro Lewandowski destacou em seu relatório que a obrigatoriedade da imunização não é a mesma coisa que “forçar” as pessoas a se vacinarem.

Para Vilhena, a decisão do Supremo vai ao encontro do preceito constitucional de que o acesso das crianças à saúde deve ser garantido pelo Estado. “O grande problema é que o governo federal não cumpre com as suas obrigações. O que o STF fez foi falar que, na ausência do Executivo federal, os entes federados podem preencher esse espaço que ficou esvaziado”, afirma.

Fiscalização do MP sobre a vacinação infantil

Na prática, o despacho de Lewandowski da última terça-feira (18/1) não institui nenhuma novidade. O que o ministro da Suprema Corte fez foi oficiar os integrantes do Ministério Público (MP) para que eles acompanhem o processo de vacinação, visto que há uma parcela expressiva da população que vem resistindo à imunização de crianças.

O ECA, em seu artigo 201, delega ao MP o papel de representação de menores de idade na Justiça. Cabe aos promotores acompanhar processos relacionados a causas de crianças e adolescentes, abrir inquéritos civis, fiscalizar instituições (públicas e privadas) que prestem atendimento a essa parcela da população, entre outras atribuições.

Dessa forma, não será instituída uma operação especial para a fiscalização da vacinação. Já há uma rede de troca de informações formada por entidades como conselho tutelar, Creas (Centro de Referência de Assistência Social), Cras (Centro de Referência de Assistência Social), Caps (Centros de Atenção Psicossocial), Defensoria Pública, Juizado da Infância, conselhos de direitos, delegacias e escolas, que inclui o Ministério Público.

Eduardo Barros, defensor público no Pará, explica que os processos abertos devem seguir o mesmo protocolo de casos de maus tratos. “Uma notícia ou um relatório é encaminhado e abre-se um processo interno de apuração. Havendo o entendimento de que é uma negativa [à vacinação da criança] deliberada, sem justificativa, o MP entra com uma representação na Justiça”, diz.

Não há um período expressamente determinado que caracterize a negligência dos pais ou responsáveis. “Não existe prazo. Isso deve ser analisado em cada caso concreto, porque a postura deliberada dos pais ou dos responsáveis é que será a principal razão para ser tomada a decisão de ingresso da medida de proteção. Não é algo automático. Não vacinou, abre-se um processo”, explica Barros.

Punição de pais negligentes

Nos casos em que a negligência dos pais for comprovada, a pena é de multa que vai de três a 20 salários mínimos, conforme determinado pelo artigo 249 do ECA. Oscar Vilhena acrescenta que nas situações em que as crianças sejam infectadas e eventualmente desenvolvam quadros graves, os responsáveis por elas podem perder a sua guarda. “Os pais também podem ser sancionados por lesão corporal, porque a ação praticada pelos responsáveis levou o filho a ser contaminado”, diz.

Segundo Vilhena, a União também pode ser acionada judicialmente por não contribuir ou negar o acesso das crianças às vacinas. “O governo federal tem feito de tudo para atrapalhar a vacinação. É um processo tumultuado, tanto dos adultos quanto das crianças. Começou tardiamente, não faz campanha de conscientização”, pontua. “Não podemos tratar como se estivesse tudo em ordem, porque não está.”

Fonte: Jota