“AMOR SÓ DURA EM LIBERDADE”: APORTES PARA A COMPREENSÃO JURÍDICA DE ENTIDADES FAMILIARES POLIAMOROSAS

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Por Vinícius Valentin Raduan Miguel (*)

Quem não começa pelo amor nunca saberá o que é filosofia – Platão apud Ministro Ayres Britto (Relator), 2011, fls. 06.

O amor é mais forte que o orgulho. Marquês de Sade.

Uma anotação preliminar

 

Se esse amor
Ficar entre nós dois
Vai ser tão pobre amor
Vai se gastar 

 

Se eu te amo e tu me amas
Um amor a dois profana
O amor de todos os mortais
(…)
Mas compreendi
Que além de dois existem mais
Amor só dura em liberdade
O ciúme é só vaidade 

 

A Maçã – Raul Seixas 

 

Aqui não se pretende afirmar que os relacionamentos poliamorosos devam ser mandamentais e tampouco que atendam às demandas de afetividades, amor e cuidados para todas e todos. Não se acredita, por óbvio, que o modelo em questão deva ser imposto entre indivíduos ou instituído contra vontades particulares, seja por concepções ideológico-religiosas ou sociais.

 

Contudo, parte-se de um cálculo que sentimentos amorosos, a busca pela felicidade em sua plenitude e a satisfação sensorial enquanto elementos que motivam e consolidam um relacionamento estável entre adultos de modo consensual, não podem ser imposição de despotismos de matrizes morais e religiosas, não devem ser objeto de interdição de efetivação. Na mesma orientação, não há base ético-jurídica para que estes relacionamentos poliamorosos não sejam passíveis de proteção estatal. Por arremate, “Há coração de todos os tamanhos e a capacidade de amar é infinita” (DIAS, 2017).

As entidades familiares (já) são de formatos plurais e diversos, escapando da outrora imposição heteronormativa e do enquadramento reprodutivo, ainda mais para exclusivamente visar à preservação e transmissão econômico-patrimonial pelo mecanismo da herança/hereditariedade.

Leia também do autor Vinícius Miguel: DIREITOS FUNDAMENTAIS NA ERA DOS EXTREMOS-A EXCEÇÃO COMO REGRA

Não se vai aqui expor a longa genealogia da monogamia, quase sempre enquanto obrigação unilateral da mulher/feminino em uma exclusividade de afeto/sexualidade para com um homem, e, dessa maneira, enquanto instrumento da sujeição do feminino para com o masculino. Para o que cabe nessa exposição, basta-nos entender que 1) a supressão do prazer pelo ethos civilizacional vigente e 2) a substituição do sentimento libidinal pela ameaça do descumprimento do dogma da fidelidade (de tipo ideal) fundam o mito econômico-político da monogamia.

 

Anote-se que os tribunais reconhecem, de modo relativamente pacífico, as uniões estáveis putativas, ou seja, a existência de relacionamentos simultâneos e não fundados na monogamia, ainda que suprimido o elemento da transparência e da consensualidade entre as/os envolvidos.

 

Diante da primazia da realidade, as tantas e novas configurações familiares são incontornáveis. A essa realidade estabelecida, só nos resta pensar na efetivação dos princípios da afetividade e da solidariedade para com as relações sociais postas, buscando a proteção jurídica para os fenômenos em exame. É alguma contribuição sobre essa temática que o texto intenta se debruçar.

Ponderações sobre a reorganização do fenômeno sociológico-jurídico da família no Brasil recente

 

(…)
Dessa nossa vida
E será uma maldade veloz
Malignas línguas
Nossos corpos não conseguem ter paz
Em uma distância
Nossos olhos são dengosos demais
Que não se consolam, clamam fugazes
Olhos que se entregam

 

Ilegais 

 

Ilegais – Vanessa da Mata 

 

Incontáveis alterações culturais e normativas, tornam perceptíveis as formas dinâmicas das sociedades conjugais, com múltiplos impactos civis (familiares, patrimoniais, de hereditariedade e de filiação), penais e em relações estatais (no âmbito administrativo, previdenciário e tributário).

 

O tipo penal de adultério (antigo art. 240, do CP) é uma das quinquilharias criminais, dissonantes do Sistema Constitucional, que só foi revogado pela Lei nº 11.106, em 2005. Se outrora se penalizou a bigamia (em um avelhantado Código Penal de 1940), hoje não há, na prática forense, que se falar em persecução penal, mesmo sem uma revogação expressa do tipo ilícito (ROSA e CARVALHO, 2017).

 

Igualmente, a exigência do requisito “honestidade” da mulher, caiu em desuso há tempos. Não se esqueça a medonha figura do matrimônio como causa de eliminação de ilícito civil, previsto no Código de 1916, em seu art. 1.548 e/ou de elisão de punibilidade nos crimes contra os costumes (CP, Art. 107, VII, revogado pela Lei nº 11.106/2005)[1].

 

As noções pós-constitucionais de um Direito Penal Mínimo de matriz não eurocêntrico-religiosa, a ausência da noção de vítima, sobretudo em relacionamentos bígamos (ou mais, plurais) consentidos, importam em falar em declínio de uma tutela penal de relações pessoais, de natureza civil/privada, em uma conjuntura de inocorrência de lesão a bem jurídico e na ausência da figura de vítima.

Da desorganização do pensamento punitivista, poderíamos rememorar o desmonte do outrora primado da indissolubilidade do matrimônio, anotações constitucionais trazidos pelas Cartas Políticas de 1937 e de 1946. Estas regulamentações, superadas tão somente em 1977, possibilitaram abrir as portas da masmorra na qual se viam encarceradas/os aquelas/es que prisioneiras/os de um relacionamento infeliz, por qualquer razão que o fosse.

 

Foram necessários mais 30 (trinta) anos desde a primeira Lei de Divórcio para que o Estado brasileiro simplificasse procedimentos, ainda que com restrições, para fomentar a separação/divórcio extrajudicial (estatuído na Lei 11.441/2007).

 

Não menos, se anteriormente não se reconhecia (ou se restringia) direitos de filhos bastardos, decorrentes de união não matrimonial religiosa (ou as relações consideradas adúlteras), hoje se perfilha a isonomia entre os filhos, sem qualquer menção até mesmo ao antigo critério de “ilegítimos”. Frise-se que o Código Civil, em 2002, revogou por completo a noção de filiação ilegítima, da Lei Civil de 1916.

 

Foi também uma demanda constitucional na Colenda Corte (Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e a Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132), que importou no reconhecimento, no ano de 2011, da união estável para casais do mesmo sexo. O caso, marco contemporâneo, é estratégico, por ementar distintos princípios, para a compreensão conforme a Constituição de um Direito das Famílias. Isso implica, ademais, em uma reestruturação do pensar jurídico para uma intervenção (de obrigações de não fazer) mínima no âmbito do particular e da intimidade.

 

Assim, na mesma seara, em observância ao preceito da dignidade humana e da felicidade, o Supremo Tribunal Federal incorporou no ordenamento pátrio as configurações familiares homoafetivas, assegurando a totalidade de direitos entre tais casais, outrora penalizados com a desigualdade de direitos, além da discriminação social.

 

Na ocasião, afirmou-se, naquela ratio decidendi, o preceito da proibição da discriminação, a vedação do preconceito, além de declarar dentre os direitos fundamentais individuais, a autonomia da vontade e o direito à privacidade. Finalmente, implicou-se em uma transição da não diferenciação preconceituosa para a proclamação do direito à liberdade sexual em um constitucionalismo fraterno.

 

Desconsiderações inconclusivas: reconhecendo (ou negando) direitos

 

(…)
Vocês e eu, eus e você… 

 

O amor o sorriso e as flores
Paraíso de Dante
Meus amores não são implicantes
Com meus outros amantes… 

 

Corcovado ou escada rolante
Tudo isso convém
Todo homem merece um harém
Toda mulher também… 

 

Poligamia – Kid Abelha

Não de somenos relevo teórico- hermenêutico, há a implicação de que as normas de tutela das unidades familiares devem ser extensivas e ampliativas, visando o resguardo da dignidade, da felicidade e dos sujeitos (LOBO, 2002, s. p.). O autor arremata:

 

Não se pode enxergar na Constituição o que ela expressamente repeliu, isto é, a proteção de tipo ou tipos exclusivos de família ou da família como valor em si, com desconsideração das pessoas que a integram. Não há, pois, na Constituição, modelo preferencial de entidade familiar, do mesmo modo que não há família de fato, pois contempla o direito à diferença. Quando ela trata de família está a referir-se a qualquer das entidades possíveis. Se há família, há tutela constitucional, com idêntica atribuição de dignidade (LOBO, 2002).

 

Se não se fala em exclusão de composições e organizações familiares não especificamente listadas no marco legal, é preciso relembrar que os tribunais vêm reconhecendo direitos de família(s) plurais e simultâneas, não marcadas por um núcleo comum e sem habitação comum.

 

O docente Carlos Pianovski é igualmente feliz em sua conceituação, aqui tomada emprestada por servir para esclarecer a situação fático-jurídica estabelecida entre unidades familiares simultâneas:

 

A simultaneidade familiar diz respeito à circunstância de alguém se colocar concomitantemente como componente de duas ou mais entidades familiares diversas entre si. Trata-se de uma pluralidade sincrônica de núcleos diversos que possuem, entretanto, um membro em comum. (PIANOVSKI, 2006, p. 193; grifo nosso).

 

Percebamos que o Legislador não vetou (não ao menos explicitamente) a possibilidade de 1) uniões estáveis simultâneas e 2) paralelas, nem 3) os outros tantos (re)arranjos retrocitados, contando ou não com a anuência e ciência de todos/as os envolvidos/as.

Assim, se o Direito vem inegavelmente reconhecendo direitos de uniões estáveis paralelas, não pautadas no comando legislativo-civil da lealdade, por que sonegar direitos para uma unidade familiar (e suas/seus integrantes) composta de maneira horizontal, plural e não monogâmica, embora consensual, constante e assente temporalmente?

O fenômeno jurídico deve promover a dignidade humana e facilitar a busca pela felicidade. Isso passa, essencialmente, por 1) não discriminar, 2) reconhecer a existência e 3) dar guarida constitucional em igualdade de (todos os) direitos para toda e qualquer entidade/organização familiar, incluindo aqui, aquelas poliamorosas.

Denegar a tutela estatal enquanto reconhecimento é, aqui, negar que pode existir o próprio amor, afeto e felicidade entre várias/os envolvidas/os ao longo de anos, em uma relação consensual entre adultos.

Relacionamentos poliamorosos podem constituir famílias e como tal, devem ser reconhecidos e não discriminados: se existem aquelas/es que conseguem pautar o amor por substratos outros que não aqueles da monogamia efetiva (ao invés da meramente promissária), da culpabilização e da repressão afetivo-sexual, com quais fundamentos jurídicos poderia o modelo societal-jurisdicional sonegar a identidade e direitos para tais organizações familiares?

Cada uma/um tem sua própria estruturação psíquica, sua peculiar constituição subjetiva e seus desejos (inconscientes, inconfessáveis, compreendidos ou não). Sobre isso, descabem julgamentos. Quanto a isso, resta-nos a avaliação raulseixista: “Por que cargas d’águas / Você acha que tem o direito / De afogar tudo aquilo que eu / Sinto em meu peito (?!)” (Sapato 36 – Raul Seixas).

Entendamos de uma vez por todas: família é o consórcio humano pautado na afetividade (DIAS, 2007. p. 41).

(*) Vinicius Valentin Raduan Miguel é Professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia. Vice-Líder do Grupo de Pesquisa “Observatório de Cidadania e Direitos Humanos”.