Migração e Direitos: Brasil finalmente passará a enxergar o migrante como sujeito de direitos

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Em março deste ano, encontro “Crianças sem Fronteiras” reuniu imigrantes e refugiados em BrasíliaFoto: Marcelo Camargo / Agência Brasil
Em março deste ano, encontro “Crianças sem Fronteiras” reuniu imigrantes e refugiados em Brasília/Foto: Marcelo Camargo / Agência Brasil

Brasil finalmente passará a enxergar o migrante como sujeito de direitos. Apesar da contribuição histórica de pessoas migrantes para o desenvolvimento cultural e econômico do país, a legislação atual – resquício da ditadura militar – criminaliza o estrangeiro, tratando-o como um risco à segurança nacional. Isso poderá mudar com a recente aprovação pelo Senado da Nova Lei de Migração, que depende apenas da sanção presidencial para entrar em vigor.

Fruto de anos de debate especializado e participativo, a nova legislação confere uma abordagem de direitos humanos à política migratória, adotando como princípio a não criminalização da migração e o combate à xenofobia. Além de reforçar direitos ao trabalho e à previdência, a lei desburocratiza o acesso à documentação, reforça garantias de devido processo legal e preenche lacunas normativas históricas, como o tratamento a apátridas. Também será a primeira vez que os direitos e políticas públicas em benefício dos mais de 3 milhões de brasileiros residentes no exterior estarão dispostos em lei doméstica.

Essas conquistas vieram acompanhadas de importante deliberação do Supremo Tribunal Federal (STF), que no último mês decidiu, por unanimidade, conceder o Benefício de Prestação Continuada (BPC) a estrangeiros residentes no Brasil. Com isso, a Corte corrige equívoco histórico, que bania idosos e pessoas com deficiência incapazes de prover a própria subsistência de receberem o auxílio mensal. Segundo o relator do caso, Ministro Marco Aurélio Mello, “desde a criação da nação brasileira, a presença do estrangeiro no País foi incentivada e tolerada, não sendo coerente com a história estabelecer diferenciação tão somente pela nacionalidade, especialmente quando a dignidade está em cheque em momento de fragilidade do ser humano – idade avançada ou algum tipo de deficiência”.

Está claro que a mudança no posicionamento sobre a forma de tratamento aos migrantes no Brasil só foi possível graças a um esforço suprapartidário, respaldado por forte articulação de setores da sociedade. Em um consenso pouco usual em tempos de polarização, Executivo, Legislativo e Judiciário compartilharam posicionamento com organizações da sociedade civil – de matriz religiosa e laica – ligadas aos direitos humanos e de migrantes.

São inúmeras as razões que levaram ao consenso. A defesa da expansão dos direitos individuais de liberdade de expressão, associação e movimentação assegurados pela nova lei migratória, por exemplo, aproxima diferentes matrizes ideológicas. Da mesma forma, é predominante o sentimento de que a América Latina, e o Brasil em especial, pode e deve apresentar uma política eficaz e moderna de recepção de migrantes, se contrapondo ao movimento internacional conservador e ultrapassado de fechamento de fronteiras.

A ascendência migrante de vários congressistas e membros do Executivo, que acreditam que essa nova lei vem a honrar o trabalho duro e a contribuição de seus antepassados, também contribuiu para a sua ampla aceitação. Igualmente importante foi a noção de que o Brasil deveria adotar um modelo de acolhida equivalente ao tratamento que gostaríamos que compatriotas brasileiros recebessem no exterior.

Espera-se que esse sentimento contemporâneo de não-discriminação e de reconhecimento de direitos conduza não apenas a aguardada sanção presidencial da Nova Lei de Migração, mas também a aplicação imediata da decisão do STF. O Brasil precisa consolidar sua liderança regional no tema não só por deliberações legais, mas por suas ações e políticas voltadas à proteção e à integração de pessoas migrantes e refugiadas. Para isso, é fundamental que sejam criados mecanismos que garantam a implementação das normas de maneira eficaz, rápida e abrangente.

Maria Beatriz Bonna Nogueira – Pesquisadora do Instituto Igarapé. Foi Coordenadora-Geral de Assuntos para Refugiados do Ministério da Justiça (governos Dilma e Temer).

Maiara Folly – Graduada em Relações Internacionais pela PUC-Rio, é pesquisadora do Instituto Igarapé