ENTREVISTA COM TATIANA LIONÇO, PESQUISADORA (UNICEUB)

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Tatiana Lionço
Estes foram alguns dos adjetivos que a pesquisadora Tatiana Lionço ganhou depois de ser vítima de campanhas difamatórias apoiadas por Bolsonaro e Feliciano
Estes foram alguns dos adjetivos que a pesquisadora Tatiana Lionço ganhou depois de ser vítima de campanhas difamatórias apoiadas por Bolsonaro e Feliciano. CLIQUE AQUI PARA AMPLIAR A IMAGEM

Por Marcelo Hailer

Em 2012 foi realizado no Congresso Nacional o IX Seminário LGBT, cujo tema era “Diversidade se aprende na infância”. A pesquisadora Tatiana Lionço (UniCeub) foi uma das palestrantes e discorreu a respeito do despertar do desejo e da curiosidade que pré-adolescentes sentem em relação ao próprio corpo e dos amigos.

Tatiana Lionço
Tatiana Lionço

O que Tatiana não esperava era que a sua fala se tornasse alvo de um vídeo (Deus Salve as Crianças) que conta com a apresentação do deputado federal Jair Bolsonaro (PP-RJ), mas que, ao invés de colocar a apresentação na íntegra, editou a fala de Lionço para dar a entender de que a pesquisadora é a favor da pedofilia.

O Conselho de Ética e a Corregedoria foram acionados para que analisassem se não havia quebra de decoro parlamentar, visto que a produção do vídeo saiu de dentro do gabinete do deputado. Porém, nada aconteceu e as acusações foram arquivadas. Se com Bolsonaro nada houve, o mesmo não se pode dizer de Tatiana, que teve a sua vida privada invadida por ataques de fanáticos que enviavam mensagens onde a classificavam como “puta, vagabunda e depravada”.

Uma campanha promovida por apoiadores de Bolsonaro foi realizada na rede, memes diziam que Tatiana era uma “prostituta”, por ter formação em Psicologia foi comparada à psicóloga Marisa Lobo (que é a favor das terapias de conversão da orientação sexual). No caso, de um lado colocaram Lionço como a favor da depravação e, do outro, Lobo como favorável à vida.

Na conversa que você lê a seguir, Tatiana conta tudo o que passou, como teve a sua vida invadida e difamada. Também revela que transformou isso em potência para fazer política. Felizmente, ela contou com apoio do seu local de trabalho e de alguns amigos de luta. Porém, diz que, do poder público, não recebeu nenhuma ajuda. E o que mais a revolta é a sensação de banalização de toda essa história e o fato de os parlamentares envolvidos nestas campanhas de difamação seguirem impunes.

Fórum – Quais medidas legais você tomou em relação aos vídeos que a difamaram?

Tatiana Lionço – No ano passado eu e o ex-presidente do Conselho Federal de Psicologia (CFP), Humberto Verona, protocolamos denúncia por quebra de decoro na Câmara com base nesse vídeo em que o Feliciano anuncia ironicamente a sua renúncia, difama autoridades políticas e atribui satanização a movimentos sociais. Mas o presidente da Câmara dos Deputados respondeu que Feliciano estava amparado pela liberdade religiosa. Também já assinei outras duas representações contra o Feliciano e o Bolsonaro, que foram entregues à Procuradoria Geral da República (PGR), mas que, até agora, não deram em nada. Diziam respeito às distorções da minha fala no IX Seminário LGBT sobre pedofilia, sobretudo. Aliás, entrei com uma representação na Polícia Federal contra o Bolsonaro e os blogues que se mostram aliados do parlamentar, que está em aberto.

Fórum – Sobre o vídeo do Bolsonaro, também não deu em nada?

Lionço – Nada, e foi a primeira representação apresentada, ainda em 2012, articulada pelo Jean Wyllys (PSOL-RJ). Fui uma das pessoas que assinou, pois foi uma ação coletiva. Sobre aquela [representação] que apresentei individualmente o ofício ao presidente da Câmara, recebi uma resposta “sabonete”. Inclusive, tenho também uma resposta do Bolsonaro, que disse que eu “incito o homossexualismo” e que era sua responsabilidade alertar a sociedade.

Fórum – Como reagiu diante dessa campanha?

Lionço – Entrei de cabeça, linha de frente mesmo dos atos “Fora Feliciano”, movida por toda essa indignação. Mas a coisa continuou, apareço de novo no vídeo do infeliz, por exemplo. O próprio Bolsonaro voltou a mencionar a discussão sobre sexualidade infantil em entrevista recente, relativa ao pleito de presidir a CDHM. E o Feliciano usou bastante o alerta sobre sexualidade na infância ano passado, em entrevistas, no entanto, sem citar meu nome e dos outros. Mas eles recuperam isso toda hora.

Fórum – Isso teve ressonância na sua vida pessoal e profissional?

Lionço – Na vida pessoal, muita, na vida profissional, nem tanto, não fui demitida (risos). E a partir daí passei a palestrar sobre o fundamentalismo religioso. Sou uma das articuladoras do movimento estratégico pelo Estado laico. Tudo isso é consequência, um jeito de tirar proveito dessas violações.

Na vida pessoal, sofri muito preconceito. Escutei de muitas pessoas que o ativismo não valia a pena, que eu me expunha demais, que deveria tomar cuidado com a minha imagem. Recebia quase que diariamente mensagens de pessoas que nem conheço me chamando de puta, vagabunda e depravada. Isso não faz bem, é ilusório acreditar que não atinge nossa sanidade mental. Depois, tive alguns ataques de descontrole emocional na Câmara, como quando fui impedida de entrar três vezes seguidas. O Jean teve que mediar minha entrada uma vez.

Entrei numa de tentar neutralizar toda essa energia negativa, cuidado espiritual mesmo. Fiz novas alianças e fiquei muito só por quase um ano, escrevendo e-mails, rastreando meu nome pelo Google, lendo absurdos a meu respeito. Pessoas chegaram a afirmar que eu consinto que um adolescente enfie o dedo na vagina de menina de 5 anos. Veja bem, na época que li isso minha filha estava com 5 anos. Foi algo muito violento, pessoalmente falando. E meus filhos sabem que isso aconteceu, aproveitei para alertá-los que existem pessoas que usam o nome de Deus em vão, como dito nas escrituras que não se deve proceder.

 

Meme utilizado em campanha contra Tatiana Lionço. Clique na imagem.
Meme utilizado em campanha contra Tatiana Lionço. Clique na imagem

Fórum – Além de você, outras pessoas também foram alvos dessa campanha difamatória.

Lionço – O Cris (Cristiano Lucas) foi alvo de um vídeo do Bolsonaro, “Professor de criança: sou viado e dou o cu”. Ele distorceu o “sou viado com orgulho” para “sou viado e dou o cu”, e sugeriu explicitamente que o Cris era pedófilo. É muito baixaria, um ataque moral diante do qual é muito difícil reagir. Você se torna pedófilo na internet e depois tem que lutar para provar que foi violado em uma acusação grave como essa.

Fórum – Como manter a integridade num momento como esse?

Lionço – Manter a sanidade mental é difícil, passei por pânico, noites a fio sem dormir. Nessas horas, o julgamento vem de todos os lados: dos que acreditam que você é um horror mesmo, dos que querem te dar lição de moral… Tem gente que fala: meu pronunciamento teria sido diferente, só não se lembram que não eram elas que estavam na mesa da Câmara. É nesse nível a falta de apoio.

Fórum – E sobre a sua participação na mesa do IX Seminário LGBT. O tema foi pré-acordado?

Lionço- O convite feito a mim, da Câmara, era para discursar sobre sexualidade na infância e adolescência e sua relação com a homofobia. Sequer foi um tema que tirei da minha cabeça ou um recorte que deliberadamente escolhi. Foi debate encomendado. E é um tema possível de ser debatido na perspectiva da Psicologia e das Ciências Sociais. Por isso, a primeira resposta que tive foi uma nota de desagravo do CFP, lida em audiência no Senado sobre ética profissional e diversidade sexual, presidida pela Marta Suplicy (PT-SP) na época.

Fórum – E os apoios das redes de ativistas?

Lionço – Sim, tiveram cartas de apoio. A Associação Brasileira de Estudos da Homocultura (ABEH), grupos de pesquisa como o GESE da Universidade Federal do Rio Grande. Tive apoio também da Liga Humanista Secular do Brasil. A Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Travestis (ABGLT), que acreditei ser a primeira instância a se posicionar por ter já passado por coisa semelhante, demorou muito a atender meu pedido de ajuda. O que quero dizer é que o apoio e a falta dele vem de pessoas e instituições imprevisíveis e toda essa violação serviu para que eu redesenhasse minha rede de apoio. O Conselho Nacional de Combate à Discriminação e Promoção dos Direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (CNCD-LGBT), vinculado à Presidência da República, emitiu nota também, apesar da omissão da Coordenação LGBT da SDH a respeito. Não medi esforços e fiz também denúncia na ouvidoria da SDH e me receberam para uma conversa e arquivamento de provas.

Fórum – E os ataques contra você pararam?

Lionço – Nada, tudo alimenta a ira deles, eles atacaram o CFP e tem cartaz difamatório me comparando com a Marisa Lobo. No caso, eu, a depravada, ela, a santa. Depois começaram a mirar em novos alvos, por isso meu nome não circula mais tanto, mas já estou preparada emocionalmente para ser xingada depois dessa entrevista. Já entendi que essa é uma luta que realmente vale a pena.

 

Meme criado por apoiadores psicóloga Marisa Lobo, que defende as terapias de conversão de orientação sexual
Meme criado por apoiadores psicóloga Marisa Lobo, que defende as terapias de conversão de orientação sexual

Fórum – Você sente que não deram importância para o seu caso e dos outros que foram e são vitimas de campanhas promovidas pelos fundamentalistas com apoio parlamentar?

Lionço – Sinto que banalizaram, no geral, como problema pessoal dos envolvidos. Nunca tivemos resposta; a audiência na OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] nacional foi a gente que conseguiu. Todas as reações foram nossas, o poder público nunca fez nada, foi um abandono absoluto.

Fórum – Você falou sobre “tortura moral”…

Lionço – Chamo isso de estupro moral, tortura moral, uma nova modalidade de tortura que não era possível na época da ditadura militar por que a internet não existia. É uma nova forma de perseguição política, de criminalização de movimentos sociais, é assim que penso a respeito do que fazem. O que fizeram comigo e com o Cris foi uma tentativa de acabar com nossas carreiras, além de nos vulnerabilizar a ataques de fanáticos.

Tem ainda o caso do pastor Retamero [pastor da Igreja da Comunidade Metropolitana – ICM, que é inclusiva], que aparece no vídeo também, o infeliz [Feliciano] fez vídeo só sobre ele. Para você ter ideia, ele sofreu agressão física na rua depois disso.
Na sorte, a gente seria espancado, e ninguém iria sujar as mãos de sangue, talvez uns fanáticos anônimos. Trabalharíamos em instituições que nos demitiriam. Felizmente a instituição em que trabalho é muito séria e o Cris também teve amplo apoio do sindicato de professores.

Entrevista concedida à revista Fórum