Defensores de direitos humanos em favelas do Rio denunciam perseguição da PM

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PMs acompanham protesto de moradores no Alemão Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil
PMs acompanham protesto de moradores no Alemão
Crédito: Tomaz Silva/Agência Brasil

 

A Defensoria Pública do Rio acompanha, desde o início do ano passado, sete casos de ameaças contra defensores de direitos humanos praticadas por policiais militares em favelas cariocas. Eles denunciaram abusos que teriam sido cometidos por policiais e sofrem com intimidações e, até mesmo, agressões.

“Ele me faz alisar o fuzil que tava no colo dele, colocar os dedos no cano. Enquanto eu aliso o fuzil, ele fala que é prazeroso ver eu limpar o fuzil que já matou muita gente. É uma coisa que me perturba muito até hoje, por saber que é verdade. Eu encostei no instrumento que o Estado usa pra matar o povo de onde eu moro, meu povo”.

Este relato é da estudante de Ciências Sociais Buba Aguiar, de 25 anos. Ela mora na favela de Acari, na Zona Norte do Rio, e faz parte do coletivo “Fala Akari”, formado pra denunciar abusos cometidos por policiais. A situação que ela descreve ocorreu em 29 de abril do ano passado. Buba denunciou à Defensoria Pública ter sido obrigada por três PMs do 41º BPM a entrar num carro, onde foi mantida por uma hora. O grupo mostrou a ela uma reportagem de Internet que citava o histórico de violência policial na região.

“É quando eu levo um tapa pra ler em voz alta. Em seguida, eles amassam o papel no meu rosto. Quando você amassa, o papel fica grosso, então fiquei com o rosto arranhado. Depois, eles me fazem comer parte do papel. Obviamente, eu não consigo engolir. Eu cuspo o papel e levo um tapa em seguida”, conta.

Após ser liberada, Buba só voltaria pra casa nove meses depois, em janeiro. Ela relata que, em fevereiro, o imóvel foi invadido por sete policiais, que teriam alisado seu corpo e destruído móveis. A perseguição descrita por ela é um dos sete casos de defensores de direitos humanos sob ameaça policial denunciados à Defensoria Pública do Rio. O coordenador do Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria, Daniel Lozoya, explica que o encaminhamento das denúncias que chegam ao órgão depende da vontade da vítima. Muitos têm receio do envio à Corregedoria da PM e, de forma geral, os casos são repassados ao Ministério Público.

“Essas pessoas podem ser só comunicadores, ou simplesmente só moradores, que vêm denunciar e acabam se expondo, por conta dessa resistência que têm a esse padrão de conduta opressor, que evita que muitas das violações ocorridas em favelas sejam denunciadas, que as pessoas sejam testemunhas, então as pessoas que se insurgem nessa resistência sofrem uma repressão muito grande por parte da polícia”, explica.

Daniel explica que o avanço das investigações nas outras instâncias esbarra no medo das testemunhas de sofrer represálias por prestar depoimento. É o que confirma o auditor militar do MP, Paulo Roberto Cunha. Ele diz que, ao receber as denúncias, o MP chama as vítimas para prestarem depoimento e tenta a identificação dos policiais responsáveis pela ação.

“Nos três casos de invasão de domicílio envolvendo essas pessoas, em nenhum deles a pessoa estava em casa. São sempre vizinhos ou alguém que avisa: ‘ó, a polícia entrou na sua casa’. As pessoas que viram não prestam depoimento, e quem presta depoimento não viu”, diz.

A Defensoria acompanha outros dois casos de defensores ameaçados em Acari, um na Maré e três no Alemão, onde o coletivo Papo Reto se mobilizam pra denunciar violações praticadas pela PM e outros problemas da comunidade, além de divulgar atividades culturais. Seus integrantes relatam que as ameaças se intensificaram neste ano, após denunciarem as invasões de casas por policiais da UPP Nova Brasília. Um deles, Raull Santiago, diz ter sido ameaçado diretamente três vezes em um único dia do mês de abril.

“No fim de tarde, esses policiais pararam na porta da minha casa. Começaram a falar meu nome e que iam me esperar. Eu não tava em casa, os vizinhos que me alertaram. Aí, outros dois integrantes do Papo Reto foram na minha casa, tiraram minha esposa e as crianças, e a gente teve que ficar quatro dias fora da favela por conta dessa perseguição direta”, relata.

Pouco tempo depois, sete perfis falsos do Raull foram criados no Facebook. As páginas faziam postagens que abordavam de forma positiva o tráfico de drogas no Alemão, tentando associar sua atuação a uma exaltação da atividade criminosa. Além da Defensoria, outro canal utilizado pelos defensores ameaçados pra denunciar é a Comissão de Direitos Humanos da Alerj. O deputado Marcelo Freixo, que preside a comissão, acredita que as perseguições são fruto da forma como o Estado encara as favelas.

“Há hoje um território perigoso, que, fundamentalmente, são as favelas do Rio de Janeiro, onde um terço da população da cidade vive e reside. Essa concepção de cidade onde um determinado território provoca medo faz com que esse lugar possa ser um lugar de negação de direitos e de ação arbitrária do próprio Estado. Então, o Estado passa a ser o principal violador dos Direitos Humanos. E qualquer pessoa que saia desse lugar em defesa dos direitos coletivos, da garantia dos direitos humanos, passa a ser uma ameaça a esse Estado”, afirma.

Os especialistas ouvidos pela CBN relatam um abandono dos programas nacional e estadual de proteção aos defensores de direitos humanos. O programa nacional, em vigor desde 2006, foi uma iniciativa pioneira em nível mundial. Hoje, 159 pessoas estão incluídas no serviço, sendo seis delas do Rio. Aqui, o programa estadual foi criado em 2013 e só ficou em atividade por cerca de um ano. O secretário estadual de Direitos Humanos, Átila Nunes, diz que não há perspectiva de recriação do programa no Rio, pelo alto custo implicado em um cenário de forte crise econômica, mas fala que a Secretaria encaminha os casos ao programa nacional.

“A gente faz a ponte, sem problema nenhum. Pode procurar a Secretaria de Direitos Humanos que a gente vai fazer a ponte com Brasília. Mas se você me perguntar assim: ‘vocês garantem a segurança desse defensor de direitos humanos?’, aí eu vou falar que depende da situação. É caso a caso”, admite.

Procurada, a Polícia Militar informou que a corporação lida diariamente com coletivos e ONGs, por meio das redes sociais, mostrando, assim, o posicionamento institucional favorável a tal articulação social. A PM lembra que a corregedoria precisa da formalização dessas denúncias pra iniciar a devida apuração.

 CBN